Capitalismo ILY


A incoerência entre o que defendemos e o que praticamos é subjacente à nossa existência. Pregar como Frei Tomás (faz o que ele diz, não faças o que ele faz) é inerente à actividade humana uma vez que é precisamente esse carácter humanista (por oposição à máquina), que nos impregna de imprevisibilidade retirando-nos a coerência que deixamos reservada para os robots. Estes não falham (tanto), nós sim.
E se em determinados ambientes esta capacidade de surpreendermos o mundo com as nossas acções revela ser algo de enaltecer, outros há em que este desajustamento entre aquilo que apregoamos e a vida que levamos pode ser não apenas hipócrita mas portador de uma enorme desumanidade.
Serve o preâmbulo para introduzir uma história que ouvi há anos e que, por alguma razão que não sei precisar, me marcou. Vivo numa sociedade capitalista e, convivendo bem com alguns aspectos desta forma de (des)regulação, custa-me aceitar outros. Acontece que não consigo traçar a fronteira entre o que é ou não é justo uma vez que até isso me parece relativo. Falarmos de ricos e pobres, quem ou como devem ser pagos os impostos ou de que forma reconhecemos o mérito são questões que não me são claras. É mais clara para mim a hipocrisia de quem passa a vida a abominar o capitalismo quando continua a servir-se dele. O contrário, se bem que menos claro, também me causa alguma perplexidade: os acérrimos defensores do mercado livre e da meritocracia (tudo em abstracto, claro) manifestam-se, à primeira oportunidade, os maiores revolucionário/sindicalistas, capazes de encostar Garcia Pereira ao PNR.
Ouvi a conversa enquanto tomava café depois do almoço de um dia de trabalho. As mulheres (eram mulheres embora para o caso pouco importa) almoçavam o que haviam trazido de casa (controlando as despesas) enquanto debatiam a sua situação profissional. A empresa para a qual trabalhavam prestava serviço numa multinacional e elas recebiam cerca de 600€ por mês. Além do valor, foi o tom de revolta presente no discurso de uma delas que me chamou a atenção. Não me recordo se estava ou não acompanhado, mas agucei o ouvido para tentar descobrir a causa. O contrato entre as duas empresas estava a chegar ao fim e a multinacional havia lançado um concurso para a renovação do serviço prestado pela empresa empregadora das trabalhadoras que almoçavam ao meu lado, para o triénio seguinte. Aparentemente, uma ilegalidade perfilava-se na mais desumana desfaçatez (e estou a ser simpático): para baixar o preço da proposta, a companhia iria despedir algumas das mulheres que ali estavam, readmitindo-as de seguida pelo ordenado mínimo (que na altura devia andar pelos 500€), podendo assim reduzir o custo do serviço ao mesmo tempo que não incorreria nos custos de formação pois as “sortudas que daquela forma manteriam os seus empregos” já conheciam as funções.
- E eles ainda acham que me estão a oferecer alguma coisa?!
Esta frase, cuspida angustiadamente por uma delas, mostrou-me pela n-ésima vez, que por trás dos números há pessoas, que por trás de termos como “eficiência”, “criação de valor (para o acionista)”, “lucro” ou “racionalização (dos custos, dos recursos, …)” está o sacrifício de uns para que outros possam ser premiados por terem “atingido os objectivos”.
Não quero cair na ingenuidade que defende que uma distribuição mais justa da riqueza se faz à custa da total ausência de critério (a História já mostrou no que isso deu) mas sem soluções para problemas como aquele que a referida conversa põe a nu, sei apenas mostrar que me parece mal o que lhes fizeram. E sei que isso é muito pouco.
Churchill dizia que “a democracia é a pior forma de governo com excepção de todas as outras”. Quero crer que há melhores formas economia para lá do capitalismo, sem cair na ditadura do proletariado.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2020

Comentários