O Longo Caminho para Casa


Hoje entrei em casa, uma casa que me pareceu diferente da minha casa, onde todas as noites entro para descansar e gozar o conforto do lar.
Um teste que, se bem que de um jeito muito distinto, há muito eu ansiava, caiu com estrondo bem no meio do nosso Caminho: o isolamento. Ainda que não esteja de quarentena, o pomposo “home office” só é eficaz para o bem comum se for completado por um esforço que, ao evitar deslocar-me, não contribua para a propagação da doença que eventualmente eu tenha contraído.
Não me preocupa o efeito que o vírus venha a ter em mim mas sim nos mais velhos, em especial nos meus pais junto de quem não quero estar para não os prejudicar nem (egoisticamente) trazer até mim problemas de consciência.
Começa o meu isolamento numa sexta-feira 13, e a ideia não me desagrada de todo. Nunca gostei de trabalhar a partir de casa mas uma quebra de rotina tão radical era por mim desejada há algum tempo. Mas no campo… e por uns meses; não em casa e a trabalhar, Contudo, é melhor isto do que nada.
Deixarei de ter que despertar às seis da manhã e vou poupar no combustível. Vou testar a praticabilidade de trabalhar dias a fio a partir de casa (protótipo para um futuro próximo?) e poder ler, escrever ou ver cinema sem a pressa de o fazer nos intervalos que a custo vou conseguindo abrir no embalo da obrigação.
É um Caminho que, apesar de confinado às paredes de uma casa onde me sinto bem, me alegra. Hoje comprei uma mesa e duas cadeiras para a varanda: há que aproveitar a oportunidade e desbravar novos Caminhos dentro de casa. Foram necessários onze anos e meio e uma pandemia para finalmente começar a usufruir da varanda que dá para a praceta das traseiras do apartamento onde resido, a melhor vista que da minha casa se consegue abarcar.
Sou dos que desvalorizou esta merda. Quer pela análise de alguns números quer pela leitura da opinião de alguns especialistas que, tanto quanto sei, ainda não se retractaram. Hoje, acredito que todos deveríamos estar de quarentena e que as medidas anunciadas ontem pelo primeiro-ministro deveriam ter ido bem mais longe. Basta ver os exemplos de sucesso vindos do oriente e os insucessos europeus. Não deveríamos esperar pelos sintomas; devíamos sim antecipá-los. Daqui a uns dias veremos como isto cresceu em Portugal (espero que não cole à exponencial que se verifica em França, Espanha, Alemanha e, claro, em Itália). Veremos como me sinto privado da presença daqueles de quem gosto, os mais antigos e os mais recentes. A sua falta não se compraz com telefonemas ou câmaras de Whatsapp (como bem sei pelo pouco a que sabem as conversas para Angola com a minha irmã e a minha sobrinha) e sei a vontade que já tenho de estar junto deles… e veremos também o efeito de dias sem ir tomar um café ou, mais importante (!!), comer um BOLO!
O outro Caminho, mais bonito, aquele que me mostrou uma outra forma de… tudo, ainda que esse quadro se detivesse poucos dias no meu campo visual, foi cancelado. O Caminho de Santiago deste ano já tinha começado a ser planeado mas esta semana o mundo pregou-nos uma partida e percebi que não vai acontecer. Não vai acontecer em Maio e veremos quando será possível regressar; este ano iria finalmente conseguir celebrar o meu aniversário no Caminho, o dia em que iria chegar a Santiago.
O Caminho interior que me sinto obrigado a impor traz também a oportunidade para uma nova forma de conhecimento. Pode não passar de um floreado poético para fazer as vezes da automotivação mas tenho vontade de iniciar este Caminho. Ficam, contudo, as saudades do futuro, do Caminho que não sei quando farei e no qual projectava as imagens dos Caminhos passados. Curioso como nesta passagem de testemunho entre Caminhos tão dispares e tão próximos ao mesmo tempo, um abraço se tenha convertido no gesto mais temido e o “à vontade” com que recebíamos os peidos ou os roncos que o outro Caminho nos ofereceu no aconchego das camaratas, sejam agora recebidos por nós sob a forma de uma melodia longínqua.

PS: Questão importante que se me coloca: nestas semanas de reclusão, deverei continuar a usar água de colónia para somente eu sentir o seu aroma? (o banho, esse é inegociável, até comigo mesmo) 

Caparide, 13 de Março de 2020

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