A Casa de Madeira


Não me lembro de onde vieram as peças de madeira mas recordo o dia em que entraram na minha vida, dentro de uma caixa com uma casa no rosto, formada pelas parcelas ordenadas de acordo com a disposição-padrão para a qual haviam sido concebidas. Os meus pais reiteravam a “inteligência” do brinquedo, pois ele permitia-me montar a casa como eu entendesse. Tal qual o Lego ou o Meccano, mas sem instruções; não tenho ideia de algum dia ter visto um manual de instruções mas talvez ele me tenha acompanhado nas primeiras explorações do brinquedo e se extraviasse por algum beco da infância.
As peças surgiram ainda na Marinha Grande. Estou por isso certo de ter sido antes Agosto de 1986 mas até desta certeza pode cair o estuque pois, à medida que nos reinventamos pelo presente, deixamos de acompanhar tão de perto o pasmo da criança que fomos e de quem nos afastamos. Assim, posso apenas garantir que a casa entrou no meu lar algures durante a infância.
Sem livro de instruções, desde cedo comecei a explorar alternativas à imagem se encontrava construída na caixa: se as aberturas para a janela e porta da frente da construção eram obrigatórias, nas laterais e na parede do fundo, ia variando a arquitectura, ora com janelas, ora sem elas. Mais tarde foi a frente da casa quem começou a sofrer remodelações e a ela transformava-se por vezes em garagem. Mais tarde ainda, era o telhado de duas águas a ser subtraído, substituído pela cobertura horizontal, ou a própria forma rectangular do edifício a derivar em variantes.
A dada altura, um saco de plástico substituiu a caixa de cartão, desfeita pelo uso. Não recordo o momento mas tenho muito mais presente o saco – que abri vezes sem conta – do que a caixa dentro da qual eu não tinha a paciência necessária para ordenar as peças como estes mereciam.
Apesar das limitações (o número de peças não permitia as múltiplas concretizações da imaginação que a junção de algumas caixas de Lego agregadas possibilitavam), além dos desenhos de que não guardo memória, este foi um dos brinquedos que mais estimulou a minha imaginação. À parte destas diversões de construção (nas quais depressa abandonava os manuais para construir o que me apetecesse – recordo um cesto de verga cheio de peças de Lego que passou para as minhas irmãs) vem-me apenas um outro sortido que ombreou com as peças de madeira (e de Lego) na construção de enredos de mundos alternativos: os bonecos de futebol que durante anos marcavam presença nos bolos de aniversário, e que, tal como as balizas, eu ia recolhendo de modo a simular os clássicos Benfica-Porto na alcatifa do meu quarto, um papel amarrotado na vez do esférico e o relato que me tinha como único ouvinte, espectador, treinador e, acima de tudo, construtor de um resultado mais previsível do que a morte.
Lembrava-me por vezes da casa, questionando-me onde teria ido parar: ao lixo, na sequência de alguma limpeza da infância? À casa do filho de algum amigo dos meus pais a quem tivéssemos passado a diversão? Cheguei até, há uns dois ou três anos, a procurar nas gavetas de um armário de casa do meu pai que ainda tem “cenas” da minha adolescência. Nada.
Até que na semana passada a minha irmã me manda uma fotografia da casa: aparentemente ficou anos, décadas talvez, na garagem lá de casa, guardada. Não sei se para outras gerações ou para eu voltar a reviver a infância, mesmo que tenha como único fito confirmar de que o que em tempos me estimulou a criatividade não passa agora de um conjunto de peças mortas que mais não fazem do que ocupar espaço. Não faço ideia se os “miúdos digitais” ainda brincam com construções. A casa pede que a construam sem deslizar o dedo por um ecrã nem permanecer vidrado em frente a uma televisão. Tal como a leitura, admito que esta forma de viajar para fora da realidade, este jeito de construir algo, seja uma casa, um carro, uma paisagem ou uma fisionomia descrita na página de um livro, tenha passado de moda. Não sei… não querendo vestir a pele de Velho do Restelo, tenho que admitir o aparecimento de outras formas de evasão, quiçá mais ricas do que as que formaram a minha geração e as que a antecederam.
Importante é que a casa cumpriu a sua função, tal como os bonecos da bola ou os livros que fui lendo. Não sei se teria iniciado a exploração da escrita e das infinitas possibilidades que ela me oferece para avançar no pensar e sentir o modo como vou vendo o mundo, trinta anos depois dos primeiros ensaios com a casa de madeira.

Lisboa, 29 de Junho de 2020

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