Dia de Taça


Eu tinha oito anos.
Um ano antes havia iniciado a minha carreira de adepto de futebol. Não tenho memória de alguém lá em casa alguma vez ter manifestado simpatia pelo Sporting antes de eu me assumir como Benfiquista mas a verdade é que para mim, tanto quanto sou capaz de reconstruir aquele tempo dourado da infância, foi o meu benfiquismo que fez a minha família “sair do armário”. Sozinho lutei contra os quatro mas, sem qualquer juízo de valor, até porque não creio que seja propriamente uma virtude, sou muito mais benfiquista do que eles juntos são sportinguistas. E se na altura apenas quatro contávamos para o Totobola – a Joana nasceu no ano em que me lembro de ter começado a apoiar o clube encarnado (não vermelho!) – permaneci orgulhosamente só depois de também ela se assumir. No entanto, não tenho ideia de alguma vez ter tido com qualquer um deles alguma discussão sobre bola. Comigo próprio sim! E com os anti-benfiquistas na escola também (nunca entendi se gostam mais do clube deles ou se odeiam mais o Benfica). Contudo o meu mau perder fazia as vezes das discussões que não tinha em casa: felizmente vivia numa vivenda mas o primeiro andar era habitado pelos vizinhos: o sr. Abílio e a dona Celeste cedo puderam testemunhar, pelo vernáculo que atravessava a placa que separava as duas casas ou subia a escada interior de acesso ao primeiro andar, a ascenção de um adepto ferrenho.
Curioso como tenho a clara convicção de ter sido aos sete anos, na segunda classe, quando eu não passava do “gajo que vai à baliza”, que me lembro de ter aderido ao melhor clube do mundo. Mais tarde viria a penar, na adolescência, depois do Fiat Pinto 6.3 no dia 14 de Maio de 1994, a noite do meu décimo terceiro aniversário e do memorável erro táctico de Carlos Queirós ao retirar Paulo Torres na segunda parte, lateral esquerdo campeão mundial de juniores em Lisboa três anos antes. Os últimos três golos do Benfica em Alvalade percorreram a “autoestrada aberta” pelo amigo Queirós. A partir daí a minha adolescência entrou em crise: todo um período de descoberta à míngua de títulos (só aos vinte e quatro voltei a festejar na inenarrável época de “Trapalhoni”).
Antes dos sete, tenho uma vaga ideia de ter ouvido falar na Argentina de Maradona, mas foi com a final da Taça UEFA ganha a duas mãos pelo Nápoles de el Pibe diante do Estugarda, a Taça dos Campeões Europeus varrida pelo Milan de Van Basten frente ao Steaua ou a Taça das Taças em que Vialli tirou das mãos de De Wilde, numa ingrata recarga para lançar a vitória da Sampdoria diante do Anderlecht, que o futebol internacional entrou na minha vida, preâmbulo do recital que ecoará para sempre no claustro da minha vida como “O” Mundial: Itália 90.
Eu tinha oito anos quando fui à bola pela primeira vez.
O Benfica havia sido campeão e o Jamor refastelava-se no palco perfeito para a dobradinha: multidão, um ruído ensurdecedor, um careca histérico à minha frente (adepto do Glorioso como eu) e a bancada em pedra de gravilha solta, marcando-me no cu o mapa 3D com o relevo do meu nervosismo.
O meu pai levou-me pela primeira vez à bola e entrámos pelo lado de cima do estádio, pela mata, do lado oposto à que então era conhecida pela entrada da maratona (não se mantém o cognome), entre churrascos, convívios e garrafões de cinco litros, ou pelo menos foi esta a imagem que guardei. O lugar – antiga lateral – ficava ao lado da baliza para onde o Benfica atacava na primeira parte.
Do lado contrário, Chico Faria fez o 1-0 com que o jogo chegou ao intervalo. Lembro-me de o meu pai tirar o boné e festejar, sem grande efusividade, é certo, mas festejar (anti-Benfica em formação?). Mais tarde diria que “torcia sempre pelos mais fracos”. Pois pai, bela desculpa! Além de não abonar muito a favor do Sporting mas tu é que dizias que “torcias sempre pelos mais fracos”; não eu.
Comecei a chorar: ver o Benfica perder no Jamor começava a desenhar os contornos de um trauma.
Na segunda parte, Vata, a mão sagrada que um ano mais tarde nos colocaria na final da Taça dos Campeões Europeus, faz o empate perante Jorge Martins, guarda-redes que recordo daqueles anos, tal como Zé António, o capitão do Belenenses que viria a levantar a taça.
A dez minutos do fim, um livre no qual a barreira do Benfica se encontrava largamente fora da área, aguardava mesmo em frente à minha tromba que Juanico partisse para a bola. E o cabrão disparou um tiro que resultou num golo de belo efeito. Um olhar atento revelaria (mais um) frango do Silvino mas um livre daqueles merece que as atenções permaneçam focadas no obreiro do pontapé.
Saí daquela merda de jogo a chorar.
A minha primeira experiência ao vivo de um jogo da bola mostrou-me a beleza do futebol: não sei se vem daí o carinho que não mais deixei de sentir pelo Marinho Peres, apesar de ele ter derrotado a minha equipa e mostrou-me também o estádio mais bonito do país (discutir factos é pura perda de tempo).

Caparide, 21 e 22 de Julho de 2020

Comentários