Chaperones

 


Diziam que o pénis de um negro fazia vários dos nossos e que tal se devia à morfologia, à genética ou a qualquer outra generosa oferta da Natureza para com os nossos irmãos, mas isso não o sabíamos ainda. Ou talvez soubéssemos e, fugindo à confirmação do desequilíbrio, evitássemos discutir o assunto a menos da zombaria que, sem graça, se limitava a esconder a inveja inconfessada das nossas mentes retidas na adolescência.

No dia seguinte eu haveria de sair da faculdade directamente para o estádio de Alvalade, depois de, sem sucesso, ter discutido uma nota com um professor e comprovado que, nas cadeiras de objectividade esotérica, a graxa e a subserviência faziam mais por uma colocação próxima de casa de um futuro professor do que o mérito e a honestidade. Ainda assim, não haveria de ser um mentiroso (na mais bela analogia que recordo desses tempos, feita pelo meu colega Emanuel) a estragar o meu dia. O debate fecharia o bloco curricular do curso: no estágio para professor de Matemática, a iniciar no Setembro seguinte, já não me sentiria aluno mas um profissional como qualquer outro, embora então ainda não o soubesse.

Era domingo de Santo António – feriado ao fim-de-semana… um apego à tradição que, em prejuízo do descanso, tarda em ser corrigido – e cheguei à Catedral três, talvez quatro horas antes do início. Deveríamos apresentar-nos com uma antecedência mínima considerável mas eu não queria chegar no meio da maralha, depois de as portas abrirem, entre hooligans e carrascos. Creio que sempre fui muito previdente nas questões de horários. Ainda assim, a vaidade era algo que assentava bem na farda verde fluorescente da Adidas quando, primeiro no comboio da linha de Cascais, e depois no metro, viajantes de todas as nacionalidades me tiravam as medidas com um interesse silencioso. Aproximava-me do destino e o saco que carregava às costas tão cheio de orgulho continha o canivete suíço oferecido no meu décimo terceiro aniversário pelo tio Zé Paulo, com que me cortei logo no primeiro dia, quando deixei cair a lâmina aberta sobre o braço esquerdo apesar dos seus avisos, tal como os do meu pai – Epá! Olha que por enquanto as lâminas estão afiadas! – para ter cuidado. Na altura ainda contava os “acidentes” com o objecto da minha soberba (Que diabo! Era um canivete suíço!) que repousa ao meu lado, na caneca da secretária onde agora escrevo: cheguei aos cinco golpes em pouco mais de dois meses, altura em que parei a contagem apesar de não recordar qualquer mutilação posterior.

A farda e o ar inocente e profissional – afinal eu era membro da organização, pertencia ao staff, tinha uma importante missão a cumprir – com que me apresentei perante o segurança junto à porta que me haviam indicado fizeram passar o saco (e o canivete) sem revista. E o que começou como obra do acaso, vir-se-ia a repetir nas restantes nove partidas de futebol que decorreram em Lisboa durante o Euro2004: o canivete suíço marcaria presença em todas elas sem ser descoberto pelo crivo das apertadas medidas de segurança do evento, mas isso não o sabia eu ainda.

Solitário, fui assistindo à chegada dos voluntários tentando identificar os três parceiros que comigo formariam a “equipa de elite”, uma das funções mais apetecíveis entre as disponíveis, apenas reservadas a homens (que ainda não nos sentíamos) e na qual eu havia caído mais ou menos por acaso.

Um elemento do grupo de coordenação (não sei se a Anabela, se o Rodrigo ou outro de que não recordo o nome) chamou-me à parte quando eu disse pertencer ao Controlo Anti-doping (percebi mais tarde, ao questionar um delegado da UEFA no decorrer de uma das partidas na Catedral, que em português, o nome sofre um twist: It should have been «Doping Control»: we’re controling the doping, not the «Anti-Doping».” – semanticamente, ambos os termos me parecem hoje correctos, de acordo com o ênfase sobre o lado do processo em que pretendemos fazer recair o controlo). Dias antes, havíamos estado reunidos, os quatro, pois a natureza específica da função assim o exigia: percebi então que, não sendo eu estudante nem profissional de saúde (iria ser professor de Matemática para, ao fim de um ano perceber que afinal já não ia; mas isso não imaginava eu naquela altura) o meu nome fora ali cair devido à experiência, dois anos antes, como voluntário no Controlo Anti-doping nos Campeonatos do Mundo de Esgrima. O Derek estudava enfermagem (nas conversas, cedo chegámos à conclusão de termos em comum nas nossas vidas a Alice, professora (e creio que orientadora) dele, mãe do João e do Joel, meus colegas de escola e quase vizinhos em Alapraia); o Rossa, eterno aspirante a médico que entrara no curso pelo contingente especial (os pais viviam na Alemanha) arrastava-se pelas aulas (segundo o Rui, meu colega desde a segunda classe até ao décimo primeiro ano, que entrou em medicina depois de abandonar o Liceu de São João para conseguir a classificação marginal remanescente e assim perfazer a média de entrada) enquanto colaborava com o Benfica, pertencendo à equipe médica das camadas mais jovens; e o Ricardo, que era o mais calado dos quatro (ou talvez esse papel me coubesse…) mas quiçá aquele com quem me entendia melhor. Tal como o Derek, era lagarto apesar de não ser fanático.

Conduziram-nos para um briefing à parte dos demais, martelando instruções altamente sensíveis e específicas da natureza da função (não tocar nos atletas afigurava-se o desafio maior no caso de estes recusarem acompanhar-nos ao gabinete médico antes de entrarem no balneário após o fim da partida, sobretudo por não nos ser permitido entrar com eles para verificar se iam aproveitar para mijar), de onde saímos com o colete azul-bebé (que ainda hoje mantenho) protegendo-nos a farda, bem como dos impulsos dos controladores de acessos, protecção essa reforçada pelo bonito cartão identificador em jeito de crachá de xerife da Catedral (também válida para Alvalade), e que continha a palavra mágica Pitch, estendendo-nos a passadeira para podermos pisar o relvado onde tudo iria acontecer, e aconteceria mesmo no inesquecível Portugal-Inglaterra, onze dias depois, quando Figo saiu de campo agastado para ser encontrado no balneário agarrado a Nossa Senhora do Caravaggio (segundo o treinador Luiz Felipe Scolari (!)), Deco terminou o jogo a lateral direito, Postiga marcou de cabeça entre John Terry e Soul Campbell, Rui Costa explodiu num verdadeiro golo de raiva, Postiga – de novo – imitou Panenka, Ricardo tirou as luvas, defendeu o penalty de Vassell para bater logo de seguida David James e colocar Portugal nas meias, no mais memorável jogo das nossas vidas. Mas nisso, nem que Deus descesse então à Terra para no-lo contar, nós teríamos acreditado.

A partir desse momento, entrámos no grupo de elite, diferenciados pelos coletes azuis: Apoio ao público (a melhor função para ver os jogos), Apoio aos media, Apoio VIP,… nenhuma outra função nos colocava tão próximo dos nossos ídolos e naquele primeiro dia de torneio na capital, sem jogos de aprendizagem que trouxéssemos para corrigir procedimentos, a expectativa e a camaradagem eram tudo o que tínhamos para enfrentar as “feras”.

Acompanhados até ao gabinete médico onde os mastodontes seriam sacados para disparar o mijo, um súbito conforto apoderou-se dos quatro (nisto posso falar por todos), uma alegria instantânea, um respaldo que nos cobriria a rectaguarda se algo incorrecto por nós fosse praticado: o médico da UEFA destacado para esse jogo tão importante dava pelo nome de Domingos Gomes, português, nortenho, médico do Futebol Clube do Porto durante anos e que nunca se deixou confundir com a ignomínia que acima de si acontecia. Os alhos, bugalhos e – por que não dizê-lo? – os caralhos com que nos recebeu de sorriso rasgado mostraram logo que, com ele, estávamos em casa.

Mais tarde, alastrar-se-ia pelas ruas um ambiente como nunca antes o país havia visto, mas isso não o conseguíamos saber então pois no dia anterior àquele domingo de Santo António, no Porto, Portugal havia perdido o jogo inaugural com a Grécia e as bandeiras não haviam todavia contagiado as janelas e os carros que se passeavam entre adeptos multicolores, multiculturais e multilingues que pintavam de alegria as ruas, bares e estádios da capital.

Antes de nos distribuirmos pelos diferentes postos e funções, recolhemos a box com a refeição a que tínhamos direito. Seguimos então, cada um cheio da sua importância, sem que mais ninguém além de nós os quatro transportasse aquela (importância) em que nos assentava a vestimenta azul-bebé e aquele Pitch mágico que que me faria pisar o relvado onze dias mais tarde quando, antes de os jogadores entrarem para o aquecimento desse Portugal-Inglaterra, sozinho resolvi entrar no terreno de jogo, enquanto os primeiros atletas experimentavam o ambiente ainda de fato e gravata, e pude olhar a moldura humana formar-se nas bancadas, vermelho e branco a toda a volta da Catedral numa mescla de adeptos lusos e britânicos, onde se tornara impossível distinguir e apartar nacionalidades pois os adeptos espanhóis haviam comprado bilhetes para aquele jogo, onde supostamente deveriam estar. Quatro dias antes dar-se-ia a meia-volta inspiradora de Nuno Gomes em Alvalade a selar o 1-0 com que viríamos a derrotar nuestros hermanos pela primeira vez em exactamente vinte e três anos: naquele mesmo dia 20 de Junho de 1981 havíamos levada de vencida a selecção espanhola num amigável realizado no Porto. Vencemos o jogo que tínhamos que vencer. Desiludidos, os bilhetes “espanhóis” haviam sido vendidos no mercado negro a quem os quisesse comprar, e portugueses e ingleses aproveitaram a oportunidade para confraternizar na mais bonita moldura que vi formar-se naquele fim de tarde solarengo, antegosto de uma noite memorável, mas isso estava eu longe de imaginar naquele momento.

Era o maior evento desportivo alguma vez organizado em Portugal e creio que a Expo98 rivalizaria com o Europeu de Futebol como a maior organização ocorrida no país. O ambiente fantástico passou dos campos para as ruas, para as televisões, para a publicidade em cada esquina com referências ao evento, tal como para os espaços espalhados por Lisboa (e pelo país) ou as camisolas que cada adepto envergava. Seis dias mais tarde, o último desse Junho, depois da meia-final de Alvalade em que Portugal eliminou a Holanda com um golo de Cristiano Ronaldo (que ali arrancava para o estrelato intergaláctico) e uma obra-prima de Maniche, adormeci no comboio entre a desilusão dos adeptos laranja, trajados a rigor, e a provocação de um tuga, prontamente expulso da carruagem por uma holandesa vestida de tigresa e um adepto com as três faixas da bandeira dos Países Baixos abertas nas faces. Envolvido por esse sentimento tão desconcertante que é a vergonha alheia, fechei os olhos, para os abrir quando o comboio chiava ao parar numa estação cujas luzes, para lá do edifício da bilheteira, não reconheci logo. Naquela fracção de segundo, lembrei-me que havia apanhado o último comboio (pela uma da manhã? Uma e meia?) para identificar a iluminação do Casino Estoril! Foda-se! Passei a estação de São João! Tenho que ir a pé para casa… foi o que fiz. 

Ao sermos conduzidos para o gabinete do dr. Domingos Gomes por um delegado da UEFA, ouvimo-lo dizer These are the chaperones ao dirigir-se a um outro engravatado de aspecto cagão (do fundo do meu complexo de inferioridade, toda aquela brigada da Europa Central e do Norte – apesar da simpatia com que nos enturmavam – me parecia um bocado cagona). Foi naquele momento que ouvi o termo. Mais tarde o meu pai disse-me que queria dizer “acompanhante” e o Luís, meu amigo, completou: Chaperone é um “pau de cabeleira”.

Relvado da Catedral. Dia mágico de 13 de Junho. Os quatro sentindo o ambiente nunca antes experimentado. Olhamos para o túnel de acesso. As duas equipas prontas para entrar no aquecimento. Vejo-os de aqui e de agora, de onde escrevo, dezasseis anos depois, ano em que deveria acontecer um novo Euro, inovando desta vez por toda a Europa; vejo-os liderando cada uma das selecções, como se de figuras mitológicas se tratassem, cartoons que subitamente ganhavam vida para olharem para nós, que era o que faziam, sob uma neblina de ar tremeluzente que não sei hoje se era real ou o resultado da minha perturbação. Não recordo se alguma palavra saiu das nossas bocas naquele instante de suprema estupefacção quando vimos David Bekham e Zinédine Zidane, companheiros no Real Madrid, ora conversando ora olhando na nossa direcção, o lugar onde tudo iria acontecer, até uma voz manietada por um dos cagões mal encarados se aproximar, enxotando-nos Vocês não podem estar aqui! dizia o segurança a mando de um dos soldados da legião de pedantes. Ainda estiquei o peito para o Pitch crescer para ele mas Isso é para fora das quatro linhas, e só à boca do túnel! A lição estava bem estudada e recolhemos ao túnel de acesso, vendo-os passarem por nós, um por um, ao mesmo tempo que um clamor se levantava lá fora, onde o final da tarde iluminava aquela realidade tão irreal para nós os quatro.

O Rossa deveria ter-se estreado pouco tempo antes como alvo do cupido pois o rapaz não só era a minha miúda para aqui, a minha miúda para ali como não largava o telemóvel nos intervalos da atenção que nos dava, aproveitando para desenrolar o folhetim do dia do evento quando, já tarde, saíamos do estádio. Lembro-me de ele ter dito Saiu-me a fava! à miúda de quem não desgrudava, a propósito do pénis do atleta que lhe calhou por sorte (ou azar) acompanhar ao controlo no final da partida, mas isso não tínhamos como saber naquele momento.

As regras foram inventadas para serem cumpridas no início de qualquer circunstância. Ao começarmos um novo emprego encarnamos o exemplo da pontualidade tal como ao principiar um namoro vestimos a pele dos pretendentes mais queridos do mundo! Depois vem a vida e mostra-nos como deve ser vivida: no caso dos chaperones, tivemos que aguentar a primeira parte do jogo no gabinete cuja placa colada na porta dizia Doping Control, placa essa que eu viria a arrancar furiosamente uma vez terminada a final do Campeonato, depois de todas as mijadelas esguichadas para os frascos, e que durante anos – quatro pelo menos – esteve afixada na porta do meu quarto como aviso a quem quer que visitasse a casa de família e necessitasse de fazer uso da casa-de-banho privativa. Mais tarde, começaríamos a assistir aos jogos da Catedral da primeira fila para assim fazermos parte do ambiente; em Alvalade a música era outra ante a triste ideia do Taveira em incluir o fosso para conter o ímpeto animalesco de quem não sabia estar na vida, e assim, impossibilitados de cumprir a nossa missão perante tamanho obstáculo (no Jardim Zoológico também havia fossos para nos separar dos selvagens) ver-nos-íamos obrigados a ver o jogo desde a sala de controlo Anti-Doping (à portuguesa) pois neste estádio, além do fosso havia também uma televisão onde pudemos assistir ao monumento do Maniche ou ao golo do Nuno Gomes que encheu o ego ao Scolari, mas isso não sabíamos nós naquele dia quando, ao intervalo do jogo inaugural na cidade, pudemos testemunhar pela primeira vez o procedimento que nomearia os jogadores para comparecer no controlo mal terminasse a partida. Antes, ao minuto trinta e oito, ouvimos o primeiro festejo ensurdecedor desde o bunker de onde toda a emoção nos estava vedada, e o dr. disse que a Inglaterra tinha marcado. Mais tarde soubemos que fora Frank Lampard quem inaugurara o activo.

Os delegados ao jogo de cada uma das equipas foram chamados à sala de controlo Anti-Doping assim que o árbitro deu por terminada a primeira parte e primeiro um, e depois o outro, tiraram duas fichas cada de saco contendo todas os números dos atletas convocados: estavam encontrados os quatro jogadores que nós, os chaperones, não poderíamos mais perder de vista. Após nos ser entregue uma pasta e indicado o jogador que teríamos que escoltar, deveríamos seguir para o túnel de acesso dez a quinze minutos antes do apito final. Qualquer jogador expulso durante a primeira parte deveria ser encaminhado para o controlo até se saber, ao intervalo, se iria ser controlado ou não. Os substituídos que se dirigiam ao balneário idem. Começava então a negociação – não nesse primeiro jogo, em que acatámos o nome que nos havia caído na pasta; só nos seguintes, mas a isso não nos atrevíamos ainda – numa tentativa de nos fazermos acompanhantes (chaperones) do atleta da nossa preferência. O nervoso-miudinho que a todos atravessava fora potenciado pelos insistentes avisos, quer do delegado quer do dr. Domingos Gomes, o gadelhudo simpático, Olhem que não podem tocar no jogador: pode ser motivo para se recusar a fazer a análise… Não podem entrar no balneário em circunstância alguma… Cuidado que os jogadores que perdem vêm um bocado mal-humorados (e os que ganham também, como viria a testemunhar depois do Portugal-Inglaterra quando acompanharia Rui Costa ao controlo e, se o magnífico golo que viria a marcar e a passagem às meias o deveria ter deixado em delírio, o penalty falhado traria até mim um homem irritado no momento da descompressão, compreensível mas que me levaria a insistir que não podia entrar no balneário sem a autorização do médico Tá bem! Tá bem! Foda-se, Caralho! mas acompanhar-me-ia, pois arriscar uma suspensão seria bem pior do que sacar da gaita para mandar uma mija.

Foi-me entregue a pasta com o nome de Wayne Bridge. Não o conhecia nem mais gordo. Lateral esquerdo do Chelsea, clube pelo qual acabara de assinar José Mourinho, logo me pus a examinar a fotografia para “não o perder de vista”.  Está no banco alguém terá dito. De imediato, comecei a torcer pela Inglaterra (não queria abordar um jogador “um bocado mal-humorado”) regozijando-me com o resultado. Descansei a emoção: estava mais próximo de não trazer um derrotado, pelo menos. O jogo foi perdendo a razão – apesar de não o podermos testemunhar, alguém nos disse que Bekham havia falhado um penalty… comecei a não gostar dos contornos que a história estava a tomar – e quando nos abeirámos da boca do túnel para os minutos finais, o confronto havia resvalado táctica abaixo para um duelo de nervos, convertendo-se numa daquelas partidas que os comentadores gostam de cunhar como “impróprias para cardíacos”. Se aos noventa minutos eu mentalmente roía as unhas enquanto assistia à contenda, com os bancos, um de cada lado, sem darem mostras de acalmar e o resultado seguia “a meu favor”, três minutos depois a França vencia, um livre irrepreensível aos noventa e um minutos e um penalty dois minutos mais tarde, ambos marcados por Zidane, activaram o medo e a atenção com que não mais desgrudei os olhos de Wayne Bridge.

Não fazíamos então a mais pálida ideia de que John Terry, o grande central da selecção inglesa e do Chelsea, andava (ou viria a andar?) envolvido com a mulher de Bridge. Colegas no clube e na equipa nacional, a história estoiraria nos tabloides britânicos seis anos mais tarde, em 2010, mas naquele momento, Bridge personificou toda a sorte que eu poderia ter tido na estreia: simpático, calmo, parco nas palavras mas colaborativo, acompanhou-me sem trejeitos de estrela, sobretudo de estrela derrotada. O banco teve a sua quota parte de responsabilidade mas algo da sua reacção talvez se deva ao carácter pensei surpreendido, até porque eu próprio não creio que viesse a reagir com tamanha estoicidade se a minha equipa levasse dois golos após os noventa minutos numa fase final de um Campeonato da Europa de Futebol.

Pelos jogos subsequentes na capital, viríamos a soltar a responsabilidade que o cumprimento das regras apertava e começámos a pedir aos jogadores que paravam pelo controlo camisolas, meias, ou calções, abordagem que era obviamente proibida no desempenho da nossa função. O Derek era o mais espertalhão – tirava-se-lhe logo a pinta – e foi ele quem inaugurou os pedidos que todos sonhávamos fazer. No final do torneio, não me queixaria do saldo que levaria do Euro2004: além da placa que figurou como guardiã da lei na porta do meu quarto, vim abastecido com as meias de um russo após o Portugal – Rússia três dias depois (quer-me parecer que o tipo se esqueceu delas: não me estou a ver, desde este exercício de memória que se vê forçado a recuar dezasseis anos, a abordar um russo para lhe pedir o que quer que seja), uma camisola do Prso, no final do Croácia – Inglaterra, também na Catedral, no dia vinte e um de Junho, e os calções do Ricardo Carvalho. Sei que trouxe os “verdinhos” com o número dezasseis de Alvalade mas não consigo precisar se foi dia vinte, depois do Portugal – Espanha, ou trinta, no rescaldo do Portugal – Holanda. Certo é que acabaria com um equipamento quase completo: faltaram as chuteiras e o caneco… mas isso não o sabíamos nós ainda.

No jogo seguinte de Portugal, a ficha com o número 7 sairia ao Derek: o cabrão trouxe o Figo, ar de bad boy para não beliscar a imagem. As palavras que trocou com o russo que, tal como ele, aguardava a chegada da vontade para mictar, recuaram dez anos e meio, até ao amigo que no dia 15 de Dezembro de 1993, então com vinte e dois anos, terminou a carreira: Do you know Cherbakov? – No (poucas palavras) – He’s my friend. Cherbakov is my friend. Nesse dia perguntou se alguém tinha um abre-caricas (os jogadores podiam beber cerveja para seduzir o mijo). Saquei do canivete suíço e quando o gabarola, ao mesmo tempo que atestava Eu já trabalhei num bar! abre a lâmina, começa a tentar arrancar a carica, feito nabo, sem dar pelo facto de o canivete ter precisamente um abre-caricas. Ainda hoje a oferta do meu tio Zé Paulo conserva o vinco feito pelo azelha que já tinha trabalhado num bar.

Mas a azelhice maior estava marcada para a estreia quando, no final daquele França – Inglaterra, o Rossa deixou escapar o pénis de Marcel Desailly para dentro do balneário onde havia sido expressamente proibido de entrar. Estranho como o aspirante a médico havia deixado fugir uma coisa tão grande, pelo menos segundo a ideia quase mitológica que de tal instrumento fazíamos. Diziam que o pénis de um negro fazia vários dos nossos e que tal se devia à morfologia, à genética ou a qualquer outra generosa oferta da Natureza para com os nossos irmãos, mas isso não o sabíamos ainda. Ou talvez soubéssemos e, fugindo à confirmação do desequilíbrio, evitássemos discutir o assunto a menos da zombaria que, sem graça, se limitava a esconder a inveja inconfessada das nossas mentes retidas na adolescência. Aparece o rapaz esbaforido dentro da sala do Controlo Anti-Doping onde a tranquilidade cavalheiresca de Wayne Bridge aguardava a sua vez para sacar a gaita e doar o líquido à ciência, isto é, ao doutor Domingos Gomes, doutor-vulcão que começou a arfar na iminência do escândalo que se perfilava no horizonte, no primeiro jogo da Catedral, quando chega o fugitivo, arrastado pelo seu delegado.. Tu Ici! berra o doutor Ok, ok, calm… tenta apaziguar o esquivo dono do pénis que ameaçou gazeta Don’t play with me!... Ok, ok… e para nós, depois de nos piscar o olho Mas este tipo julga que brinca com um português, ou quê!? Eu só do Nuorte, caralho! (juro que ele disse “caralho” e não “carago”, daqueles “caralhos” que morrem no final da pronuncia mas que ainda assim se deixam identificar pelo “lh” em vez do patético “g” que nem é vernáculo nem deixa de ser).

Saiu-me a fava! dizia o Rossa ao telefone para a namorada (era só mel) enquanto abandonávamos o estádio. A fava sair-nos-ia na final ante a Grécia, mas isso estávamos longe de imaginar, sabíamos sim que teríamos outros nove jogos pela frente e uma das experiências mais engraçadas que vivi enquanto voluntário. Necessitaríamos de esperar doze anos para podermos finalmente festejar um Campeonato da Europa com uma equipa onde apenas Cristiano Ronaldo e Ricardo Carvalho coincidiriam com essa que acompanharíamos até à final do nosso descontentamento. No entanto, naquele dia tudo estava ainda no início e os coletes azul-bebé continuaram a passear a sua importância entre a Catedral e Alvalade durante aqueles maravilhosos dias de Junho e Julho de 2004.

Tanto que ainda não sabíamos nesse dia, e talvez seja essa abençoada ignorância que torna tudo tão especial: soubéssemos antecipadamente que iriamos “limpar” os ingleses por intercedência da Nossa Senhora do Caravaggio, que alcançaríamos a final para cumprir a dobradinha e demonstrar, para mal da nossa tristeza, que a História também se repete, ou que viríamos a vencer aquele mesmo torneio anos mais tarde quando ninguém acreditava na equipa a não ser o seleccionador Fernando Santos Eu já disse à minha família que só vou dia onze para Portugal… vou ficar cá muito tempo ainda… só vou dia onze para Portugal, dia onze do mês que vem… e vou lá e vou ser recebido em festa, e teríamos sido mais felizes?

Mesmo sem o termos conhecido, o badalo do Desailly marcou aquele primeiro dia do “nosso” Euro. Mal sabíamos nós ser aquilo que nos esperava. O Rossa que o diga.

  

Caparide, de 10 a 11 de Maio de 2020

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