Ainda há Pinhões?

 


O Dia da Espiga é o feriado municipal com que cresci.

Talvez seja um pouco abusivo dizer que cresci, uma vez que aos cinco anos deixei o concelho para voltar amiúde durante as férias e fins-de-semana. Provavelmente as memórias que guardo desses primeiros anos de vida, decerto mais próximos do quinto do que dos primeiros tempos, permanecem nítidas devido a essa mudança de meio tão radical.

Era (talvez ainda seja) tradição as famílias irem para a mata fazer piqueniques no Dia da Espiga (Quinta-feira da Ascenção), em Maio, e recordo uma ou outra romaria dessas, não necessariamente nesse dia, mas pouco importa, pois levar o farnel para a mata era uma forma de aproveitar e viver o meio que nos acolhia.

As matas nacionais cobriam – e este tempo verbal ainda treme ao não saber se o devo empregar – oitenta por cento do concelho da Marinha Grande (pouco importa se é noventa ou setenta) em caminhos, piqueniques, passeios, idas às pinhas ou aos galhos, apanhar musgo para o presépio,… ocupações que, sem grandes assomos de saudade, eram mais ou menos naturais (ou, novamente, talvez ainda o sejam).

Tenho uma fotografia que comprova a minha presença num piquenique em família, com o Fiat 127 da minha mãe ao fundo, coberto por uma tonalidade grená esbatida pelo sol e pela idade (JU-13-22… ou IP-13-02… já não sei…) por isso estas imagens não caiem no saco (roto) dos floreados da memória quando esta tenta reconstruir o passado, reunindo os cacos em que a vida foi largando as imagens que nele habitam.

Lembro a alegria que sentia quando a minha avó me comprava pulseiras de pinhões na praça, na Marinha Grande. Ainda hoje gosto de pinhões mas naquele tempo, aqueles sabiam melhor. Não por ficarem bem no meu pulso e muito menos venho com a conversa de “naquele tempo é que os pinhões eram bons”. Não: sabiam melhor porque não tinha que lhes tirar a casca.

Por vezes encontrávamos pinhas com pinhões e quando isso acontecia, era uma alegria. Vinha depois o trabalho: separava o pinhão, pegava num calhau e martelava-o até a casca partir. Poucas vezes conseguia deixar o fruto inteiro. Daí o valor que eu dava às abençoadas pulseiras. Pelos vistos, outros também têm noção do valor subjacente a descascar pinhões, a avaliar pelo preço por quilo.

Em 2017 o pinhal ardeu e com ele, tudo o que não é possível imaginar para quem nele não viveu, ainda que nos tenhamos cruzado somente numa parcela diminuta da vida. Os passeios e o cheiro; as inúmeras viagens até São Pedro de Moel, agora despidas de árvores, como se de uma paisagem lunar se tratasse; as sombras que arderam com as árvores que lhes davam forma, os caminhos explorados como se nunca ninguém por lá tivesse andado; …

Resistiu a Ponte Nova, uma das zonas mais bonitas, curiosamente uma mescla de pinhal e eucaliptal. Mas resistiu, em torno do riacho, com as suas pontes, fontes e áreas de merendas. Muito pouco para tamanha imensidão. Muito pouco para tantas lembranças, vida, e uma vontade de voltar a esse espaço tão verde, que ultrapassa a memória e a vida, uma vontade que parece reconstruir todas as sensações que o fogo queimou em poucos dias.

E o musgo e os galhos? E os caminhos pintados de verde, luz e sombra? E as árvores? E as pinhas? Que papel lhes cabe agora no Dia da Espiga?

Por isso pergunto: ainda há pinhões? É que não me importava nada de ferir os dedos como na infância, para aproveitar os poucos que resistiam à minha força sem jeito. A pedra lançada contra o fruto. Era sinal que ainda existem; ou que voltaram a existir.   

 

Nota: as fotos do incêndio e pós-incêndio são de Ricardo Morais

 

Rinchoa, 19 de Novembro de 2020



Comentários

Ricardo Morais disse…
Magnífico texto o qual também a mim me fez lembrar o meu tempo de miúdo e as saudades que sinto.
E obrigado ao António Vasconcellos Dias por ter utilizado as minhas fotos.
António V. Dias disse…
Obrigado Ricardo.
Não estava na MG quando aconteceu o incêndio mas, por mais tristes wue sejam, é importante o registo fotográfico. Não há fogo que apague as nossas memórias.
Obrigado pelas fantásticas fotografias.
Um abraço