Eu era muito novo
para acompanhar a Argentina de 86 e os palhaços de Saltilho. Com cinco anos, o
futebol não ocupava ainda uma parcela relevante das minhas preocupações. Dois
anos mais tarde lembro-me de apoiar o Benfica e de essa época (88/89) ser a
primeira em que me recordo de acompanhar a bola. O Glorioso, sob o comando de
Toni, foi campeão e durante três ou quatro anos, ancorei a minha cultura no
desporto rei. Agora, ao pesquisar sobre as finais europeias dessa época, lembro-me
das três: não vi os 4-0 com que o melhor Milan da História destruiu o Steua na
final da Taça dos Campeões Europeus mas lembro-me de uma eliminatória em que
dizimaram o Real Madrid em San Siro por 5-0. Lembro-me do Barcelona de Julio
Salinas, Guillermo Amor e Andoni Zubizarreta ter levado a Taça das Taças diante
da Sampedoria, mas para mim, a grande final desse ano foi a da extinta Taça
UEFA. Na altura, a Taça dos Campeões admitia apenas os campeões, fortalecendo a
Taça UEFA com os segundos, terceiros e quartos classificados de cada país. Nenhuma
semelhança com o lixo que passeia hoje pela Liga Europa. A final da UEFA
jogava-se a duas mãos e a imagem que formo hoje dessas duas partidas é mágica:
no San Paolo, o Nápoles de Maradona venceu o Estugarda por 2-1 mas na Alemanha,
o 3-3 que deu o troféu aos italianos ainda foi a tempo de me fazer fã de El
Pibe (se bem que por pouco tempo).
No ano seguinte
acontecia mundial, o primeiro e o mais mágico da minha vida – Itália 90
– quiçá por ser o primeiro, uma vez que as criticas não lhe granjeiam grande
qualidade futebolística (houve quem o qualificasse como “o pior mundial de
sempre”… curioso como o olhar de criança é capaz de subverter a lógica dos
adultos). Era hábito fazermos contas de cabeça durante as qualificações para,
no fim, nunca pormos os cotos nas grandes competições, e esse ano não fugiu à
regra.
Sem a ladroagem do
desporto televisivo agrilhoado nos canais pagos (antes havia quem refilasse
(não digo quem) por dar muito futebol na televisão; depois começaram a
queixar-se quando os aficcionados se viram enxotados para o café de cada vez
que queriam ver bola), podíamos desfrutar dos jogos em canal aberto.
O Itália 90
abriu com a maravilhosa equipa dos Camarões de Milla, Makanaky e Omam-Biyik a
vencer a campeã em título, Argentina, por 1-0. Batista, Burrochaga, Maradona e
Claudio Caniggia (uma das revelações da prova), entravam com o pé esquerdo. No
jogo seguinte, o azar parecia condenar os argentinos a abandonar o torneio
quando Pumpido, o guarda-redes campeão quatro anos antes no México, parte a
perna e é substituído por Sergio Goycochea.
O azar de uns é a
sorte de outros e não creio que a minha memória desse mundial fosse tão vivida
se a lesão de Pumpido não tivesse estendido a passadeira para o que Goycochea
viria a mostrar: 2-0 perante a União Soviética e um empate a 1 contra a Roménia
selaram a fase de grupos. Depois veio o festival de Goycochea-Caniggia com 1-0
ao Brasil nos oitavos e dois jogos memoráveis, contra a Jugoslávia e contra a
Itália, ambos estendidos até aos penalties onde um atleta que estava destinado
a não sair do banco inscreveu o seu nome na história da competição. Goycochea
defendeu dois penalties em cada uma das eliminatórias oferecendo a final à
Argentina, que pouco futebol apresentara para tal.
A final, com a RFA,
uma reedição daquela outra onde a Argentina se sagrara campeã no México com uma
vitória por 3-2, deixou-me dividido: a Alemanha (e o seu mítico equipamento)
foi-se tornando na minha equipa daquele mundial (até certa altura eram a
Alemanha e os Camarões – foi com pena que os vi deixar a prova, ao caírem por
3-2 diante da Inglaterra de Bobby Robson), mas do outro lado estava o jogador
(juntamente com Lothar Matthaus) que eu mais admirava no torneio. O racionalismo
europeu contra o coração sul americano. Na altura dominava em mim a razão; hoje
nem tanto (apesar de Zweig e Cortázar continuarem a bailar neste duelo
recalcado entre o consciente e o subconsciente dos espelhos onde leio algum
significado para a vida). O jogo foi convergindo para uma batalha campal e
acabou por se decidir num penalty. Não fosse a exímia colocação de Andreas
Brehme e Goycochea juntaria mais uma defesa à colecção de feitos daquele ano.
Vale a pena (re)ver a excitação do árbitro de cada vez que se esticava para
mostrar um cartão (dois jogadores argentinos foram expulsos): um perfeito
parvalhão.
Não voltei a acompanhar um Campeonato do Mundo de Futebol como naquele ano: ainda segui o EUA 94 mas aquando do França 98 já o futebol de selecções havia perdido aquele encanto que me levou a decorar os plantéis (sabia os nomes de todos os guarda-redes do mundial), a acompanhar os golos e sentir o público amontoado nas bancadas no último mundial livre de preocupações com o público.
Caparide, 27 de Dezembro de 2020
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