É curioso o quanto de
nós próprios nos revela o acto de destralhar, até no que nos julgávamos o
oposto do que acabamos por ver plasmado nas coisas que guardamos.
Comecei este
fim-de-semana a limpar a casa onde vivi durante mais de doze anos. À primeira
vista, ela encontra-se relativamente desimpedida, não de um jeito minimalista,
mas de uma forma insuspeita quanto à existência de entulho. Nestes dois
fins-de-semana, ao dar início à empreitada que me vai tomar boa parte do tempo
livre dos próximos meses (não pretendo deixar de viver mas ir vivendo no
entretanto), apercebi-me de quão enganado tenho andado: o facto de ter
acumulado quando há anos venho repetindo para mim que “já não sou assim”,
levou-me a concluir não ser assim, “em parte” e que o passado acumulado
permaneceu em casa tempo demais, desde a altura em que eu ainda juntava lixo.
Talvez a enumeração
do que em tempos fui guardando não mostre nada por demais e muitos se
reconheçam nas recordações de casamentos (em parte redundados em divórcios), do
livrinho do primeiro ano da catequese ou de um porta-chaves nunca utilizado
oferecido por alguém querido (no caso, o Carlos Filipe, amigo do meu pai
falecido em 2001 depois de dois anos de luta contra a doença).
Comecei pelos livros
e, exceptuando os que versam sobre Espiritualidade, Lei da Atracção ou
Religião, caminhos que bati numa fase importante da vida para descobrir não ser
a via a seguir (as descobertas mais importantes vêm das negas que encaixamos),
foi um martírio. Pesaram inclusive na minha consciência muitos livros de que
não gostei, chegado o momento de me desfazer deles: não sabemos as voltas da
vida (como a Sofia tem O Velho e o Mar, esse é um dos que vai de vela).
Terminada a primeira
iterada da triagem da biblioteca caseira, ataquei a estante dos dossiers
do tempo da escola. Não sei a razão pela qual guardei tanta a informação,
fichas, testes, respostas, etc… do 7º ano até à tese de mestrado: treze anos
lectivos distribuídos por dezoito pastas… ou se calhar até sei.
Poucas ou nenhumas
vezes os abri para ver. Alguns estavam colados. Comecei pelos primeiros anos,
mas fico-me sempre pelo teste final de Perspectiva Histórica da 4ª
classe:
P: Portugal logo nos primeiros anos da República viu-se envolvido numa luta em que participaram muitas nações. Que luta ou guerra foi essa?
R: FOI A GUERRA DO 25 DE ABRIL.
P: Em 1933, surge a Constituição Política do Estado Novo. Quais os órgãos de soberania criados por esta Constituição?
R: INSTALAR A DEMOCRACIA.
Completa: A Constituição de 1933 consagra um regime AUTORITÁRIO e DEMOCRÁTICO.
P: (…). Logo após as eleições, que aconteceu ao General Humberto Delgado?
R: FICOU MINISTRO.
Completa: Em 1968, o Professor Salazar foi acometido de doença grave e substituído na Presidência do Conselho de Ministros pelo Professor MANUEL DE ARRIAGA.
Completa: O Movimento das Forças Armadas nomeou uma DEMOCRACIA para presidir aos destinos do país.
P: Em Maio de 1974, (…). Nos princípios do Outono é nomeado Presidente da República o general TEÓFILO BRAGA.
A revisão da História,
qual discípulo de Estaline, feita por um miúdo de dez anos (neste teste tive
69%). Como mandar para o lixo tal pérola?
Saltei então para as
pastas da Licenciatura e do Mestrado: quão fácil (e libertador) foi esvaziar-me
dos piores anos do meu percurso académico. Se nunca tive dúvidas do carácter
puramente utilitário das Finanças na minha vida, com a Matemática a música é
outra: sempre me intrigou a sua natureza, o modo como representa tão bem o que
vemos acontecer ou até o que não vemos (Einstein, a n-ésima dimensão, o quinto
postulado de Euclides, o Paradoxo de Russel ou os Teoremas de Incompletude de Gödel),
discorrer se é ela pré-existente à natureza humana, cabendo-nos a saborosa
missão de a ir descobrindo, ou se a inventamos à medida que aprofundamos a
tradução lógica deste todo unificado. Contudo, quando leio nomes como Topologia
e Introdução à Análise Funcional ou Mecânica Racional, pergunto-me: Que
bicho era eu naquela altura?
Nos anos
universitários, deixei muito menos de mim na escola do que no básico ou no
secundário, daí a facilidade com que me desfiz das resmas de papel cujas únicas
funções foram conceder-me alguma segurança (ainda que aparente, não fosse eu
necessitar de recorrer ao Teorema de Lagrange para descobrir como elevar o
açúcar a ponto de caramelo) e curvar as prateleiras da estante, de segmentos de
recta em catenária ou arcos parabólicos, cedendo ao peso através do tempo.
Ainda assim, o que ficou
da Matemática é mais Filosofia do que Matemática. As cadeiras do terceiro ano
em diante estão no lixo; os dois primeiros deixei-os no primeiro ataque, para
hoje terminar a limpeza.
Do demais percurso
escolar, estacionei a coragem na rua e deixei os dossiers para analisar
noutra etapa deste destralhar. Não é tanto o saudosismo de que já padeci o que
me leva a ponderar guardar algumas destas preciosidades, mas um gozo enorme em
olhar para quem fui um dia e de quem, na vertigem deste tempo, me esqueci.
Consciente de que a moda saltou da glorificação do passado para as palas que nos
empurram o olhar para a frente, creio que guardarei alguns bocadinhos de vida,
caligrafada numa letra que fui perdendo. Ali se encontram as provas do percurso
escolar da última geração cujos enunciados dos testes eram feitos à mão pelos
professores e depois fotocopiados, cujos trabalhos eram apresentados em
cartolina, antes dos acetatos ou Power Points, com colagens ou textos
escritos, ou cujos alunos – eu – eram prejudicados em dois valores na nota dos
relatórios de Técnicas Laboratoriais de Química, no 10º ano, por
apresentar os mesmos escritos à mão. Em Dezembro desse ano de 1996 os meus pais
compraram um Pentium 133 e toca de encher de bonecada, pipetas, arco-íris,
Word Art e Comic Sans, num espalhafato pueril que marcava a
diferença entre o 15 e o 17. Simples. É esta história que gostava um dia de
contar a um filho, mas se me resumir a discorrer sobre ela, ele não acreditará.
Apontamentos da cadeira de 'Análise Superior' (1 folha escrita com tudo o que quiséssemos) |
Depois houve tudo o
resto nos 30% de destralha que completei naquele quarto: o bilhete do último
jogo de futebol que aconteceu no antigo estádio da Luz – Portugal-Estónia – no
dia 6 de Outubro de 2001, Superior Central, 3º Anel por 2.500$00 (12,45 €),
bilhetes de amor, um pisa-papéis da Ilha da Madeira que a minha avó me trouxe
da sua estreia de avião, já depois de atingir a senioridade, ou pequenas
mensagens que eu escrevia e guardava, ansiando que “o Universo conspirasse”,
tempos em que acreditava nestes marcos de correio expresso com ligação directa
para o Cosmos, na esperança de que a rede apanhasse quem quer que realizasse
desejos, fossem as estrelas (para os mais espirituais), Deus (para os religiosos),
os Anjos (para os indecisos ou não-binários), ou qualquer outra entidade que me
ouvisse. Só mais tarde varreria as ilusões para agarrar a dura crença de ser eu
mais responsável do que gostaria de crer, e de que as coisas boas e más que nos
escapam não têm dedo celestial, derivando apenas de sorte e azar.
E os DVDs… quantas
lembranças retêm alguns objectos a que nunca mais darei uso: dos que me foram
oferecidos e que, tendo ou não visto, me recordam um amigo (o Vítor com Sangue
do Meu Sangue, A Pianista ou Cenas da Vida Conjugal; o Nuno
com Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal; o Leroy com O Terceiro
Homem, as minhas irmãs com alguns dos James Bond com o Sean Connery
ou a Fátima com o Grand Canyon), me lembram os filmes que sempre fizeram
parte da vida familiar (Cocoon, Dr. Jivago ou Música no
Coração), um que pesquisei e seleccionei para comprar, descobrindo mais
tarde ser um dos filmes da juventude do meu pai (Shane), ou que evocam o
esforço para juntar dinheiro e adquiri-los, quando surgiram os DVDs (20€ cada –
nunca gastei 25€ - Nascido a 4 de Julho, O Caçador, Uma Leoa
Chamada Elsa, Kramer Contra Kramer, A Luz é Para Todos ou Laços
de Ternura e, claro, a série completa dos DVDs do Marco).
Foi este o resultado de 30% de limpeza de uma única divisão da casa.
Ainda não fui às fotografias, à estante da sala, às pastas dos melhores anos da
escola ou à roupa. Se dá algum trabalho libertar(mo-nos d)o passado, sabe bem
sustentar as memórias com algo mais do que as pequenas grandes histórias que
vamos contando a nós mesmos para compor a coisa maior que é a nossa vida.
Caparide e Rinchoa, 1 e 7 de Agosto de 2021
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