Houve sempre um tempo
para renegar as despedidas, como se, ao reconhecer a sua inevitabilidade, tal
qual a morte, “pastelássemos” um pouco a vida para protelar o que ainda não
havia terminado. Na verdade, houve muitos tempos como esse, sempre que uma
mudança se desenhava mesmo que ao longe, até aquela que, de tão distante, se
escondia para lá da curvatura da Terra (os terraplanistas não padecem deste
antegosto). Numa mudança de emprego, de casa, de relacionamento, um amigo (ou
família) que parte para longe, ou até uma rotina que altera, como o fecho do
estabelecimento onde todas as manhãs tomamos o café e lemos meia-hora antes de
pegar ao trabalho.
Não é nenhum desses
tempos aquele que me levou a abrir o computador e relembrar o período em que o
fim se adivinhava. E no entanto, gostei desse tempo, saboreando-o na certeza de
que não levaria muito até que nos separássemos. Não esperava que acontecesse da
forma que aconteceu mas será que existem assim tantas coisas que acontecem do
jeito que antecipamos?
No Verão de 2005
terminei o ano lectivo na Luísa de Gusmão, escola onde estagiei, no
secretariado de exames. Foi a Amélia quem propôs o meu nome, atitude que me
massajou o ego e estendeu por um mês ou dois aquele convívio entre colegas – no
secretariado ficava grande parte da malta fixe da Luísa: A Amélia, a Fernanda,
a Maria João, o Joaquim Segura, o Carlos…
O último dia foi
triste para mim, não pelo ensino, pois poucas vezes tive tanta certeza acerca
de algo que não queria, mas pelas pessoas. Como o motor do velho Peugeot 205
Junior que da minha mãe passou para mim, e nas manhãs frias custava a
arrancar e só à custa de fechar o ar ele lá se decidia, também a mim me custava
desenrolar as primeiras palavras mas, em dias ou semanas de encontro, assumida
a confiança, o verso de O’Neill ganhava vida, e inaugurávamos mesmo a palavra
“Amigo” assim que nos conhecíamos.
Aconteceu com vários
colegas da Luísa. Na sala de professores, pouco ou nada falávamos, o Emanuel e
eu. Ele falava mais do que eu, na verdade, mas no fim, era eu quem me ligava
mais. O ano foi correndo por nós e a Anabela, a Helena, o Onivaldo, a Sandra, o
Pedro, a Albertina, a Tânia ou a Catarina foram-se aproximando dos contornos da
inauguração do verso: Amigo.
Terminaram as aulas,
o secretariado e, à entrada para férias, a Amélia lançou o aviso: Agora não
despareças. Não desapareci, e foi então que se iniciou o último curto
espaço de tempo antes do afastamento que sabíamos (?) vir. Não sei se sabíamos,
ou pelo menos como viria, mas ao longo daqueles dois anos alimentámos a amizade
dos acasos que a vida nos servira. Quizzes, a Lousã, a Catarina, que,
entretanto, surgira na vida da Amélia, até estabilizarmos nos jantares mensais,
no início da minha vida empresarial.
A Helena, a Anabela,
a Tânia, a Catarina, o Emanuel e a Joana formaram o grupo. Sem constância, lá
fomos aguentando o ritual iniciático da nova fase, sentindo o aroma a fim,
Apareceu o Franz na vida da Amélia (julgo ser esse o seu nome) e o fim foi
abreviado. Gostávamos de cortar na casaca, e assim fizemos até o grupo se
desfazer.
Naquele curto espaço
de tempo em que os jantares se sucediam a cada mês, eu ainda acreditava que o
coração tinha espaço para abarcar uma infinidade de amigos, e que à passagem da
vida, pudéssemos ir recolhendo aqueles que connosco quisessem caminhar, até ao
fim. Creio que só nesta década percebi como a vida é curta para nela caberem
todos aqueles de quem gostamos ou acendem em nós uma centelha de curiosidade.
Lembrei-me hoje de uma resposta de Ronald Koeman a um jornalista, quando
treinava o Benfica. À pergunta sobre se alguém (não recordo quem mas julgo que
era Co Adriaanse) era amigo dele, o holandês respondeu: Amigo não: amigos
temos quatro ou cinco na vida. Com os outros podemos dar-nos bem mas não somos
amigos.
Na altura fiquei a
pensar na triste vida que ele deveria ter. Hoje entendo o que quis dizer. E nem
é pela pressa em que vivemos (e que eu tento desacelerar) ou pelos afazeres que
nos invadem: é porque para aprofundar as relações com aqueles que não só
percorrem o mesmo Caminho como o fazem em sintonia, na mesma passada,
necessitamos de tempo, Tempo de verdade e não o curto espaço de tempo que corre
antes do fim e vemos cair como uma avalanche, tornando inútil o esforço para
contrariar.
Não vou voltar a
referir o impacto que a Amélia teve na minha vida. Eu sentia que o fim viria
por uma certa tensão em que, pelo menos naquele momento, o fio que nos ligava
se encontrava. Não obstante, julgo (ou talvez seja um desejo hipotético), que
voltaríamos a abraçar a amizade que em tempos nos ligou. Sem que eu soubesse, a
Amélia já naquele tempo pertencia ao grupo dos quatro ou cinco quando eu julgava
ser muito mais vasto.
E se no fim, todo
este enredo de “o que foi e já não é” se convertesse numa verdadeira descoberta
do lugar onde mora a felicidade? Ou pelo menos, de encontrar o trilho. É que
esta selecção natural não é mais do que a vida a ser vida, e eu sinto-me não só
feliz mas grato, privilegiado e genuinamente dentro da história, por ter os
amigos que tenho, ainda que, no fundo, sejam os quatro ou cinco de que Koeman
falava há quinze anos.
As mudanças trazem
sempre ondas de choque, mas tal como a água de um lago volta a acalmar depois
do tumulto causado pela pedra lançada, também aqueles com quem privamos, depois
do primeiro impacto, ficam, se o pouco tempo de que dispomos juntos for melhor
do que antes, ou partem, se os caminhos forem diferentes. E é uma descoberta
continua e fantástica esta dos quatro ou cinco, porque no fundo, penso que eles
sabem que o são. Tê-los neste curto espaço de tempo onde fazemos vida é orbitar
a perfeição.
Rinchoa,
15 de Agosto de 2021
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