Conheci-a numa esplanada de Tavira no Verão de 2018. Preferira ficar
em terra enquanto os amigos gozavam o último dia de praia. Eu chegara naquele
dia e fazia horas antes de poder entrar na Pousada de Juventude. Levava comigo
Anna Karenina. Vi-a escrever no que me pareceu um diário e, passado algum tempo
em que saciei a fome e a leitura, dirigi-me à mesa dela. Julguei-a inglesa mas
não encontro o momento em que percebi ser russa. Falámos do cinema e literatura
russos e ao virar a capa para lhe mostrar o que estava a ler, disse-me que o
clássico de Tolstoi era o seu livro preferido (o meu nem tanto, mas isso só o
viria a saber meses mais tarde).
Não mantivemos um contacto estreito desde então: uma troca de
mensagens pontual online, felicitações de aniversário, e pouco mais.
Não dobrou ainda os 30, é editora numa revista e tem explorado a veia
criativa através de diversos cursos de escrita criativa.
"Hi, Antonio!
You can't imagine how happy I am to
read your message. Cause I already get used to the thoughts that all foreigners
hate Russia and think that we are fascists.
Of course, my friends and I are
against this war. We even went to the protests a week ago but now it is almost
impossible. Putin has signed a new law that calls for sentences of up to 15
years in prison for people who distribute false news about the Russian
military, maybe you know that. Everything is closing here: liberal media,
banks, cultural projects, Instagram, Facebook. I think almost 80% of people I
know have already left the country.
Have absolutely no idea what to do.
Actually I’ve never had such a panic in all my life. :("
Devo confessar que a minha
interpelação foi impulsionada por reacções positivas da L. contra a guerra. Foi
através desse solo terraplanado por uma posição mais humana da sua parte, que
resolvi lançar a mensagem, ao décimo dia após a invasão ou guerra (o termo que preferirmos,
desde que seja uma palavra proibida pela ditadura de Putin).
Mais tarde nesta conversa, a 7 de
Março, ao partilhar com ela uma imagem de uma publicação da Nexta TV,
noticiando que a Rússia se preparava para se desconectar da internet global,
devolveu-me que não conseguia ver a imagem contendo a notícia que eu havia
enviado... Transcrevi então o
conteúdo: "No later than March 11, all servers and domains must be
transferred to the #Russian zone. In addition, detailed data on the network
infrastructure of the sites is being collected.". Neste momento, em que um
anunciado shutdown da rede na Rússia se aproxima, não sei por quanto
tempo esta plataforma continuará activa. Questiono-me se, pelo simples facto de
estar a trocar estas mensagens com alguém que, tendo-me confessado ser
abertamente contra o regime que a tenta calar, vê a cortina descer a uma
velocidade cada vez maior e encobrir todos os lampejos de liberdade que ainda
conseguem brilhar (não sei por quanto tempo teremos este canal de conversação
aberto), não a estarei a prejudicar? Angustia-me saber que as palavras que
trocamos percorrem um túnel cada vez mais estreito e as imagens partilhadas se
perdem nas profundezas, como se aquilo que os conspiracionistas sempre
propalaram no seu mundo cinzento ganhasse
agora cor nesta transposição para a realidade.
Pedi autorização para falar sobre
esta conversa.
Com este pequeno testemunho
pretendo apenas corporizar o que todos sabemos, mas que tantas vezes esquecemos
no calor de uma barbárie: há russos e russos como há ucranianos e ucranianos.
Sabemos das manifestações na Rússia pró-Putin, mas restam também muitos
corajosos que vão ensaiando uns acordes de humanidade.
Claro que não há simetria
possível neste momento quando do outro lado da fronteira a mãe de um menino de
11 anos de Zaporizhzhia,
cidade cuja central nuclear, a maior da Europa, os russos ocuparam no passado
dia 4, se vê obrigada a enviá-lo sozinho numa viagem de
comboio de 1.000 kms, rumo à fronteira com a Eslováquia, com uma mochila, um
saco de plástico, um passaporte e um número de telefone escrito nas costas da
mão, por ter que ficar a tomar conta da sua própria mãe, uma mulher doente. A história encerrou o primeiro capítulo com um fim
agricode:
"Estou muito grata por o
meu filho ter sido salvo", disse Yulia Pisetskaya, num vídeo publicado na
rede social Facebook no domingo.
Na mesma rede social, a polícia
eslovaca disse que o menino "conquistou o coração de todos com o seu
sorriso, a sua coragem e a sua determinação, dignas de um verdadeiro
herói".
Os voluntários na fronteira
contactaram familiares da criança na Eslováquia, que a foram buscar e a levaram
para a capital, Bratislava."
JN, 6 de Março de 2022
Resta-nos aguardar pelo capítulo seguinte, e esperar
que seja o do reencontro.
Não há equiparação entre esta história, uma de muitas
e que está longe de ser a mais dramática, e a de L.. Mas a história para os
russos como a L., que furaram o primeiro posto de controlo da fronteira
primária do Imperialismo, está apenas a começar. Resta-me desejar com toda a
força que a história se esfume ao despertarmos e possamos constatar que tudo
não passou de um pesadelo.
Não haviam passado cinco minutos
desde que havia escrito a última linha e recebo a resposta da L.: "OmG.
I heard some gossips." (a propósito do fecho da internet).
Provavelmente estas luzes que ainda vão lançando sinais do lado de lá da
fronteira apagar-se-ão em breve. Pouco tenho a acrescentar perante esta
avalanche de irracionalidade e de ignomínia a que começam a faltar adjectivos.
Lisboa, 7 de Março de 2022
PS: Soube hoje, dia 9
de Março, que a L. saiu da Rússia e está agora num país estrangeiro. É também,
ainda que com muito poucas zonas comuns de comparação com o drama do país ao
lado, uma espécie de refugiada. Teve que sair, ainda que temporariamente, para
um lugar onde tinha algumas pessoas amigas, para poder continuar a gozar a sua
liberdade.
Vi hoje nas notícias
que a maternidade de Mariupol foi bombardeada pelas tropas russas e que
mulheres em trabalho de parto ficaram debaixo dos escombros. Do lado de lá da
fronteira da barbárie, “um grupo de crianças russas com doenças terminais
foi obrigado a ficar na rua em condições de baixas temperaturas para fazer a
letra ‘Z’ (símbolo de apoio à invasão da Rússia à Ucrânia)”. Pacientes e
funcionários de um hospital que trata doentes com cancro foram convocados para esta
mórbida manifestação. Nem Soljenítsin chegou tão longe n’O Pavilhão dos
Cancerosos! É neste manicómio, nesta terra insana, um holocausto
preconizado por um louco (e tolerado/amenizado por alguns inqualificáveis no
Ocidente) que estamos. Mas é também a lucidez e o espírito livre de pessoas
como a L. que vão mantendo viva a crença de que, contrariamente ao título do
filme, Moscovo Não Ainda Acredita em Lágrimas.
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