Gilberto e Joaquim

Após três anos e uma pandemia pelo meio voltei ontem à Luz, e entre as muitas exibições que me ficaram na retina, houve uma que me lembrou o Joaquim: a do Gilberto.

O Gilberto é daqueles jogadores que compensa a falta de jeito com a entrega e o pulmão que deixa em campo. Dá tudo o que tem e por isso, não podemos pedir mais disse o David, ao meu lado no estádio, talvez para evitar a irritação de ver mais um lance perdido após nobre esforço do lateral direito benfiquista. O Joaquim também tem muito pulmão (quanto pulmão!), parecendo ligado à corrente desde que acorda até… até à hora que ele quiser.

O Gilberto é uma locomotiva (uma vez mais: créditos do David), levando tudo à frente – bola, adversários e a nossa condescendência – tal como o Joaquim que quando salta para cima da secretária nada faz para se desviar do teclado, dos óculos ou do tapete do rato, qual viticultor a pisar o mosto enquanto no mail, suspenso no monitor à sua passagem, surge a meio do pedido de uma proposta de seguros o rrrrrrrrrrrrrrrrtttttttttttttttttt. É o Gilberto a cavalgar campo fora.

O Gilberto é desengonçado na progressão e condução de bola, mas de vez em quando saca uma finta à Maradona que nos deixa com aquela sensação aparvalhada como quando um líder de claque defende uma tese de mestrado e pensamos: Afinal… há esperança! É o Joaquim a brincar com a bola ou o guizo como se tivesse ataques epiléticos em cadeia na condução do objecto, atropelando pessoas e mobiliário que se atravessam no seu caminho, sem cuidar das cabeçadas com que vai marrando, na madeira ou na parede. Decerto terá já ganho algumas lesões cerebrais à conta de tanta cabeçada (ainda que possua uma quantidade de neurónios superior à de um líder de claque).

O Joaquim gostas de conduzir as fezes pela casa como o Gilberto conduz o esférico em campo: desenhando um reticulado aleatório que esconde o objecto conduzido de todos, por vezes até do próprio, mas que amiúde nos oferece um rasgo de virtuosismo, rodopia entre divisões e consegue esconder o naco de merda nos lugares mais inacessíveis, tal como o Gilberto faz passar a bola pelo buraco da agulha quando tenta a sorte entre adversários mais dotados e por vezes sai uma gracinha de fazer levantar o estádio. A gracinha do Joaquim faz levantar um grito Porco dum cabrão! Larga essa merda! a que ele faz que não ouve deixando-nos desconcertados, tal como o Gilberto quando a gracinha não sai bem e atiramos da bancada Foda-se! Nabo do caralho!

Julgo que o Quim Zé vê mal ao perto. Talvez seja hipermetropia, a avaliar pelas cronhadas que vai dando por onde passa, sempre que decide (como será o processo de decisão num cérebro tão reduzido?) dirigir-se de um ponto a outro da casa, e o acaso distraidamente me coloca no seu caminho, deitado em pijama no sofá a ver televisão quando sua excelência dá em ir ver a vista junto da janela por trás. Coloco de imediato a mão em armadura sobre o vasilhame porque para aquele carroceiro, os meus tintins são tara perdida. Da mesma forma, o Gilberto avança com a bola para cima do adversário. Por vezes sobe por nós uma esperança irracional de que no último momento vá sacar uma finta à Maradona e deixar o outro pregado mas não, quase sempre acontece aquilo que estamos mesmo a ver que vai acontecer apesar da estupidez que antecipamos: estamos a vê-lo ir contra o outro mas temos a esperança de aquilo não ser possível, de que no último momento ele… mas não… não é que o gajo marra mesmo no outro! E então Burro do caralho! Mas o gajo não vê que estava outro gajo à frente?! É isto e cruzar bolas para a área. É uma expressão de que nos servimos como moleta de linguagem porque os cruzamentos do Gilberto raras vezes chegam à área. Iriam para a área se não estivesse um jogador da outra equipa à frente em quem o Gilberto invariavelmente acerta, qual golfista a meter a bola no buraco. Só que este vê mal e o objectivo era desviá-la do outro. Talvez seja hipermetropia, tal como o Joaquim. Almas gémeas.

À falta de uma ida ao oftalmologista, vamos sofrendo. Com o Gilberto e com o Joaquim. Quanto a este, pouca esperança tenho em que a sua movimentação de tigre meio apalermado me surpreenda (a Sofia é mais optimista); agora quando o lateral direito do Benfica se engana ou tem um insight e finta três artistas com um nó cego, uma revienga e dois golpes de rins, a surpresa esfusiante é exponencialmente maior do que se fosse o Maradona ou o Zidane, artistas por defeito: se vem do Gilberto foi Deus que se enganou nos comprimidos.

A progressão do Joaquim José está balizada pelas paredes da casa, daí as cabeçadas não marrarem apenas no mobiliário mas também no tijolo que reveste a habitação sempre que atiramos algo e ele sai disparado atrás de qualquer porcaria como se fosse o bilhete premiado da lotaria com jackpot, travando somente por efeito da lei de acção e reacção, a terceira Lei de Newton das aulas de Física. A sorte do Gilberto é um campo de futebol ser delimitado por linhas pintadas na relva, sem paredes nem rodapés para tropeçar ou travar.

O Gilberto esconde a bola dos adversários (e até dos companheiros) tal como o Joaquim esconde de nós as fezes em lugares que nem fazemos ideia. Mais tarde deparamo-nos com algo debaixo da cómoda, entre a máquina da loiça e da roupa ou no tapete da cozinha (há divisões da casa que, na nossa ausência, passaram a estar vedadas aos gatos). Quando o Gilberto se sai bem de uma finta à Maradona, dispara um míssil para lá de Bagdad ou pura e simplesmente se esquece de que está a jogar futebol e a bola, abandonada ou recolhida por um oponente, se torna para ele num objecto estranho, também nos surpreende pela estranheza dos lugares onde, em cada uma das situações, ele é capaz de a colocar. Julgo que até o próprio se surpreende com a habilidade ou falta dela, tal como o Joaquim deve estranhar conseguir saltar tão alto atrás de um guizo ou de uma bola, ou conduzir uma poia com tamanha arte entre os objectos da casa, tal como o Vítor Hugo ou o Carlos Realista deslizavam nas finais dos Europeus e Mundiais da meninice.

O Joaquim fareja tudo, qual perdigueiro na altura do cio, e não há nada que façamos em que não venha meter o nariz ou dar uma patada; o Gilberto por vezes também aparece onde menos esperamos mas regozijamo-nos quando dá a sua patada. É que quando se trata de distribuir fruta – arte em que o Joaquim é carinhoso – o Gilberto não é meigo.

A boa vontade do Gilberto é a ingenuidade do Joaquim: ambas deixam em nós aquela culpa de que, se nos irritarmos (ou escrevermos umas palavras jocosas ou até sarcásticas), estamos a errar, a ser injustos, a não reconhecer o esforço (no caso do Gilberto) ou o instinto (do Joaquim). Ou até trocando os nomes a coisa funcionaria, vestindo a culpa pelo instinto do Gilberto ou o esforço do Joaquim José em simplesmente serem aquilo que a natureza permite. Porque é disso que se trata: um e outro são fiéis às respectivas naturezas (semelhantes, de resto) ao mesmo tempo que se tentam superar. Por isso aplaudo um e outro, no estádio e em casa. Na verdade, O Gilberto e o Joaquim dão-me muito mais alegrias que tristezas. Talvez seja demasiado querer extrair deles o que eles não conseguem dar. Dão o que têm e isso é o suficiente para gostar de um e de outro. Não se pode dizer que seja amor à primeira vista mas sim um amor… um carinho vá… ou uma compreensão que vai evoluindo, que vamos construindo com o tempo. Talvez tenha mais piada deste modo; mais emoção tem de certeza. Mas quando no fim as alegrias são mais do que as tristezas, isso é tudo o que importa.

 

Rinchoa, 3 de Agosto de 2022

 

PS: Ontem, dia 5, o Gilberto marcou o primeiro golo do campeonato. Eu sabia: é um craque! Aposto que há quem passe a vida a dizer mal dele. Onde é que andam esses agora?!

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