Apple House - Apontamentos de Quase Nada

 


Atravessei meia Lisboa com uma celeridade inesperada no fim de tarde chuvoso antevendo filas e acidentes quando, findo o trabalho, saí da torre a caminho do Apple House. Não havia concerto no Campo Pequeno, o que ajuda à festa que é estacionar com facilidade por estes anos na capital e por isso, foi com surpresa que dei por mim a entrar num lugar que vaguava naquele mesmo instante no eixo central da Defensores de Chaves, o Mercedes a sair em marcha atrás e eu a entrar, sem sinais de chuva mas com a noite a insinuar-se pelas sete e um quarto, e o livro, que eu havia guardado no porta-bagagens por não acreditar na janela temporal que afinal se abria para a leitura, foi resgatado (e o portátil camuflado sob os sacos de supermercado).

Entrei no carro para decidir num segundo que não ficaria no habitáculo sombrio a forçar a vista com Pátria, de Fernando Aramburu, e, depois de confirmar – julgo que já sabia – junto do parquímetro que àquela hora o expediente de espoliação dos bolsos dos automobilistas já terminara, segui para o restaurante com o calhamaço debaixo do braço.

Os clientes habituais encontravam-se na cerveja e na conversa, também elas habituais, cada uma puxando a outra, enquanto o lugar aguardava pelo Quiz. Não fiz por apanhar do que se falava, pois pretendia avançar na leitura enquanto esperava pela minha equipa. Sentei-me numa mesa ao acaso enquanto o Carlos e o Júlio organizavam o layout das mesas para o jogo daí a uma hora e pouco e quando chegou a Amarguinha já a minha mesa havia sido removida, tendo que pousar o copo por empréstimo no lugar dos Fénix, adversários no jogo. Chegou o resto da equipa no momento em que terminava um capítulo (são pequenos) e troquei para a mesa habitual. Assim não teria que voltar a levantar-me e poderia ler tranquilamente.

Os elementos das equipas iam chegando como retalhos que lentamente foram compondo o tear de mesas montado pelos anfitriões, e o lugar, que não sendo grande parecia espaçoso quando vazio, depressa se encheu de ruído e movimento, as pedras de gelo obrigatórias no cocktail quinzenal das quintas-feiras no Apple House.

Ao retomar a leitura, sinto pousado em mim o olhar profundo e azul do homem que se encontrava em frente, velho e costumeiro naquele lugar, ainda que o Quiz não seja com ele e quase sempre desapareça mal o jogo começa. Insisti na leitura levantando a cabeça amiúde, tentando retomar o fio à história, somente para verificar que aqueles olhos continuavam fixados em mim. Ou melhor, sabia não ser eu o objecto daquela curiosidade e abri passagem à pergunta: com o livro aberto, sintonizei o olhar com aquele outro e esperei que ela – a pergunta – viesse. Surgiu através de linguagem gestual, apontando para o livro e, com a palma de uma das mãos virada para o tecto, agitava-a, como o maestro no fim do concerto pedindo aos músicos para se levantarem. Ergio o “tijolo” deixando a capa virada para o curioso e legendei Estou no início por isso ainda não lhe consigo dizer se é bom. A resposta veio sábia Amigo, para mim basta ser um livro; é o suficiente. Talvez tenhamos trocado mais uma ou outra palavra antes de eu regressar à leitura, mas já não consegui acompanhar a história. Aquela curiosidade tão natural e corajosa, o arrojo concedido pela idade e a desvergonha haviam activado a fantasia repetida de um livro como desbloqueador (ou promotor) de conversas com desconhecidos (há alguns anos acontecera-me um encontro bonito, propiciado por Pirandello e Um, Ninguém e Cem Mil, no aeroporto Adolfo Suarez, enquanto esperava pelo voo de regresso a casa). Tentei captar a atenção do homem para, mal o contacto se estabelecesse de novo, eu accionar a alavanca que me levaria até à sua, e assim trocar dois dedos de conversa pois afinal, bastava um livro. À volta dele foram-se acumulando conhecidos e a atenção do velho foi sendo consumida pela mulher e pelo homem (não tinham vindo juntos) que pairavam numa algaraviada como electrões em torno do núcleo onde eu pensara entrar. O momento foi atrasando até se desvanecer em quase nada, um encontro que mal aconteceu, tendo que me contentar em voltar à Pátria o que, devo confessar, não era sacrifício nenhum. De qualquer forma, gostava de ter explorado a conversa que começava a imaginar.

Foi a meio do terceiro capítulo que o António – só mais tarde nessa noite viria a saber o nome dele – se aproximou da mesa e, depois de pousar a garrafa de sidra acabada de abrir, eu lhe estendi o livro antes de ele mo pedir. Aqui, ainda que não tenha memória da forma precisa como se deu o contacto, admito estar a poetizar a abordagem e ele me tenha questionado sobre a obra e só então eu lha tenha passado para a mão sem mais palavras (mas teria sido bonito!). Viu-se que estava mesmo a ler a contracapa, pelo tempo e atenção que dedicou à sinopse e flashs de resenhas, e ao devolver-me Lá será um que vou ter que comprar em breve. Fiz que não, que lho emprestava quando o terminasse – afinal ele ajudava-nos de vez em quando com uma ou outra resposta mais fugidia nos quizes – e ele agradeceu, mas acautelei que talvez só daí a um mês, pois eu não leio rápido e sempre são mais de setecentas páginas (letra grande, margens generosas e espaçamento à Lagardère, é certo, mas não deixam de ser setecentas biscas para exercitar os bíceps, tríceps e mesmo os ombros). Nesta terra a leitura é um luxo e o seu hábito uma raridade; prova disso: pagamos as histórias ao quilo e não pelo conteúdo. Ainda que a fantasia venha à borla, o papel está caro.

Por esta altura já a algazarra era total, com os pedidos da ementa a chegarem via Whatsapp pois era eu o único dos Manéis (a nossa equipa) que se encontrava no Apple House àquela hora. Depois de chamar pelo rapaz quatro ou cinco vezes (o coitado mal tinha tempo para respirar, tal era o número de refeições a sair antes de começar o jogo) lá consegui fazer os pedidos e retomar a leitura. Não havia feito grande conversa à conta do livro, mas assinalara um empréstimo no calendário (emprestar livros é daqueles erros que se repetem na esperança de que talvez agora seja de vez, diferente, que funcione, tal como os casamentos da Liz Taylor). Chegou a Sofia, depois o Pedro e por fim a Filipa e o Matias. A leitura do terceiro capítulo foi terminada já em casa, na cama, a que se seguiu o quarto (capítulo) daquela noite. Quando um livro é bom, muito mais do que a história que ele nos conta, são as histórias que ele nos proporciona que também fazem a história da sua leitura ser mais ou menos memorável.

 

Rinchoa, 21 de Outubro de 2022



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