Tradição de Natal

 

Talvez seja a maior tradição dos meus Natais, maior do que os presentes, os jantares, os doces ou a família, ainda que tenham voado uns vinte anos, talvez mais, desde que vi Música no Coração pela última vez. Borregava pelos catálogos infinitos dos canais por cabo e streaming quando resolvi procurar o clássico dos clássicos, dos Natais na televisão portuguesa e da minha vida, e nem o facto de demorar 172 minutos me demoveu (e como estava com sono esta noite!) de arriscar, a lareira a soprar o aconchego da época e a Sofia a responder “Sim” de lá de dentro à minha pergunta bafejada com uma súplica – Queres ver a Música no Coração? – para pouco depois começarmos a ver e deixarmos por três horas esta realidade e viajarmos com a magia do filme e do passado.

Este é um filme que faz parte da vida e do passado de muita gente da minha geração (e das anteriores). Não pareciam ter decorridos vinte anos pois as cenas antecipavam as seguintes, como as deixas no teatro chamam pela fala seguinte, as primeiras notas ou palavras de cada música logo descobriam toda a composição na minha cabeça, e eu cantava em silêncio sem perder pitada da história, bonita sem contudo formar um grande filme: Música no Coração é um filme maravilhoso sem ser grande, é a magia que furou a técnica e o formalismo para ser capaz de entrar em tantas casas, vidas, infâncias, foi o filme cujas canções tive que decorar para a festa do Inglês da quarta classe e que mais tarde fui aperfeiçoando naturalmente, puxando-as para outra forma ou ritmo, a cantar e a ver, de tantas vezes que passou na televisão e, mais tarde, de ouvir a banda sonora em loop.

Música no Coração vê-se repetidas, múltiplas, infinitas vezes encaixadas nos pedacinhos de vida em que apetece rever do início ao fim, como aconteceu hoje, ou em pequenos apontamentos ou “à partes” somente para recordar aquela canção, personagem, diálogo, paisagem ou cenário. E que paisagens! E que cenários!... aquela casa e jardim ainda hoje se aproximam do que é a minha casa de sonho, não por gostar de vivendas mas pelas vezes que sonhei estar ali, junto daquela escadaria, naquele salão de baile, primeiro silencioso e mais tarde recebendo a festa, no pequeno pavilhão de vidro. Vê-se ano após ano sem cansar, tal como lemos O Principezinho ou ouvimos Vincent de Don McLean, obras que não sendo grandes são muito mais do que isso, muito mais do que tudo porque tocam cá dentro e ficam, e reconhecemo-nos nelas, e deixamo-nos ficar, deixamo-las ficar, viajamos, aprendemos com elas a viajar, a sonhar, a cantar e a chorar, e talvez seja isso o Natal, esse intervalo de tudo para aprendermos qualquer coisa quando conseguimos escapar da rotina; talvez seja essa a razão pela qual estes presentes fazem tanto sentido nesta quadra. Música no Coração é a invenção do Natal

E eu até nem gosto de musicais, sobretudo aqueles que são cantados do início ao fim… soam-me sempre a parolices infantis…

- Eu vou ali - cantado pelo gajo - Eu vou ali Eu vou ali

- Ele vai ali Ele vai ali - cantado pelos amigos do gajo.

- Ah pois vou! Oh se vou! Eu vou ali - volta a cantar o gajo.

- Ele vem aqui Ele vem aqui - cantam elas enquanto esperam pelo gajo.

Música no Coração não tem nada deste atraso mental sob a forma de som e imagem. É um musical que não é musical mas é muito mais do que um musical, é um filme que voltou hoje à minha vida, visto à lareira na antevéspera de Natal para ocupar novamente o lugar que sempre foi dele mas do qual andou escondido, partilhado com a Sofia pela primeira vez (talvez seja difícil convencê-la a fazer de novo esta viagem de três horas para o ano…) e visto por mim talvez pela décima ou décima quinta vez, sem exagero (se estiver a falhar é por defeito), só porque sabe bem revisitar os lugares que nos fizeram, os lugares que são muito mais do que lugares, tal como nos mostra O Principezinho no que as pessoas ou as rosas representam para nós, ou Vincent, ou Silêncio e Tanta Gente, ou a Servidão Humana, e por aí fora, num elenco muito restrito das peças que, sendo de toda a gente, parece terem sido desenhadas, compostas, escritas, realizadas ou construídas para nós. Maria, o Capitão e as crianças (e até Rolf e a Baronesa), Edelweiss, Climb Every Mountain e Do Re Mi, tudo é mais do que as palavras compreendem, como os números que uníamos nos livros da infância para vermos surgir um desenho que não estava lá numa semi-magia que com o tempo do crescimento fomos matando. Pelo contrário, o imaginário de Música no Coração não caiu como as folhas caiem das árvores com a passagem do tempo: é muito mais do que o filme que vi hoje, tal como a rosa é muito mais do que a rosa. Música no Coração talvez seja “só” isso: é música que estará sempre no meu coração.


Rinchoa, 23 e 24 de Dezembro de 2022


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