Em Abril de 1990
eu frequentava a 3ª classe no Externato Príncipes de Aviz, não haviam
passado seis meses da queda do muro e a reunificação da Alemanha estava em
curso (algo que nós, fedelhos de oito/nove anos, pouca ideia fazíamos do
que representava mas sentíamos ser importante - Ai, eu vou gravar: é um
momento histórico! recordo as palavras da Conceição, a nossa professora em
conversa com a Teresa, docente de outro ano. Por cá, a selecção, acostumada
a não se apurar para coisa nenhuma, continuava a jogar como nunca e a perder
como sempre, com grandes talentos que em conjunto pouco faziam (o grande pecado
lusitano) – Futre, Rui Águas, Rui Barros, Vítor Paneira, Veloso, João Pinto, Carlos
Xavier,... – e as infraestruturas finalmente nasciam, com autoestradas a
aproximar o país das férias e das visitas à família (as viagens em Setembro
para Vila Real de Santo António pareciam intermináveis quando entrávamos na
serra algarvia), mas sem conseguir aproximar o interior do litoral (o que só
décadas mais tarde poderia ser confirmado).
O país e o mundo
eram outros e a televisão constituía-se ainda como a caixinha mágica que havia
mudado a História. A informação chegava filtrada pelo profissionalismo de um
jornalismo que, sem uma panóplia concorrencial que se visse, podia não se
centrar na qualidade, mas também não embarcava em populismos ou
sensacionalismos para mendigar as últimas décimas de audiências, que mais tarde
tudo transformaria em espectáculo mediático. Na escola falávamos de futebol e
de outras coisas, e jogávamos mais ainda. Nesse ano, o Benfica começou a ser um
caso sério na segunda mão dos quartos de final da Taça dos Campeões Europeus:
levando para a Ucrânia uma vantagem magra obtida na Luz com um golo solitário
de Matts Magnusson, no terreno do Dnipro foi outro avançado quem brilhou.
O brasileiro Lima (Adesvaldo José) bisou e atirou o clube para as meias-finais,
inscrevendo o seu nome no mapa mediático (o que na altura podia ser descrito
como mediatismo). Recordo-me de falar destes jogos, de não se falar de outra
coisa além do Lima, mas não me lembro de ter visto qualquer das partidas.
Lembro-me sim, e bem, do que viria a acontecer a seguir.
Ditou o sorteio
que o adversário que se interporia entre o Glorioso e a final de Viena fosse o
Marselha, um potentado da altura. O futebol era muito diferente, segurando os
derradeiros vapores de um amadorismo que, não se coadunando com o negócio e os
milhões de que hoje está refém, trazia magia ao espectador e rotatividade às
competições (desde que existe Liga dos Campeões, já lá vão trinta anos, só
um outsider – o Porto – foi capaz furar a hegemonia bocejante da grupeta
dos mesmos de sempre, comprados por árabes ou americanos, para rodar euros e
jogadores, no negócio de carne branca mais legalizado e hipócrita do mundo).
Basta ver a entrada das equipas em campo na primeira mão desse primeiro jogo no
Vélodrome, para perceber como tudo era outra coisa ("protocolo" era
uma estrela distante para ser observada de vez em quando ao invés do
procedimento espartilhado que os agentes desportivos se vêem hoje obrigados a
seguir).
Abrindo o jogo:
o momento de glória de Lima estendeu-se até Marselha, inaugurando o marcador
com um cabeceamento imperial. O jogo passou em canal aberto e eu vivia os
primeiros anos de adepto benfiquista, apanhando o fim de uma era dourada. Lá em
casa, torcíamos todos pelo clube português, apesar de eu ser o único que tinha
naquele jogo o seu clube em competição, mas o facciosismo clubístico, que
já existia no país (e muito), não havia ainda alastrado para nichos mais
pequenos como a família ou os amigos, dada a inexistência dessa dupla
"democratizadora" chamada internet/redes sociais. Fomos – nós
benfiquistas falamos assim, na primeira pessoa do plural, e fica bonito –
massacrados durante o resto do jogo como não se via desde
Alcácer Quibir.
O Marselha tinha
nomes incontornáveis como Amoros, Deschamps, Tigana, Papin, Chris Waddle ou
Francescoli. E tinha um querido ex-benfiquista (que mais tarde haveria de
regressar): o sarrafeiro Carlos Mozer. Também o Benfica tinha talento para
distribuir com Aldaír e Ricardo Gomes, Paneira, Thern, Valdo ou
Magnusson. Somente duas substituições eram permitidas e, se não havia limitação
ao número de estrangeiros permitidos, a regra havia sido declinada muito pouco
tempo antes, assentando cada equipa num núcleo de jogadores nacionais.
O empate aconteceu ainda na primeira parte e o maior petardo a fazer estremecer uma trave que eu alguma vez (não) vi aconteceu minutos depois com o míssil de Waddle, um especialista em livres que felizmente não teve sorte naquela noite. A fechar o primeiro tempo consumava-se a reviravolta para minha (nossa) tristeza lá em casa. A segunda parte baralhou-me a vida: eu andava na catequese e a crença em Deus devia-se a um misto de conforto e receio. A chacina que aqueles quarenta e cinco minutos viriam a mostrar, revelaram-me que Deus só podia existir para salvar o Benfica daquela forma (e ao fazê-lo, trazer-nos a todos uma onda de esperança até Lisboa) mas não era possível que permitisse tamanha injustiça para o clube francês, que deveria ter saído daquele jogo com a eliminatória resolvida. Um sufoco (para quem não acredita, está aqui a prova).
E eis que, com
uma vaca leiteira daquelas que se desfaz em leite para um regimento,
chegamos à Luz a um golo de atingir a desejada final da prova maior da UEFA. A
televisão não passou o jogo pelo que me vi forçado a encostar ao rádio, e
ao relato que nos traz sempre uma partida mais vertiginosa do que aquela que os
olhos vêem. Sozinho no quarto, naquela noite mágica de dezoito de Abril de
1990, agarrei-me ao transístor depois do jantar, num nervoso miudinho que a
imaginação dos lances atiçava na mente de um miúdo que ainda não completara
nove anos. O inferno da Luz, com cento e vinte mil nas bancadas e os mesmos
intérpretes de quinze dias antes dentro de campo, o tempo assassino a queimar
as etapas da esperança à medida que se aproximava o intervalo e depois, com a
segunda parte e eu a transpirar (não me recordo mas devo ter transpirado –
ainda hoje acontece quando fico nervoso), e o golo que não vinha e, se bem que
não atirasse a toalha ao chão, começava a ver-nos morrer na praia, tão próxima
estava a final e nós à porta sem força para a empurar, um dedo bastava e já
estava! Mas o que estava mesmo era difícil, e eu tremia e o coração batia e as
mãos esfriavam, sem posição que as acalmasse, a luz da secretária a
sombrear todo o quarto, tão cheio daquele relato, nítido e nervoso, analógico,
o botão constantemente a ser rodado para ajustar a frequência que se perdia
devido à "chuva" e a antena esticada ao máximo, e sempre que as inteferências interrompiam
uma jogada perigosa, lá dava eu um toque irritado na antena ou no botão (ou a
"pancadinha de amor" no aparelho, para "ver se ele
aprendia"), tentando repor a tensão, a angústia e a emoção, o amor a um
clube e o poder da imaginação, sem televisão nem internet que nos desse a cada
instante o número de remates, cartões ou posse de bola, somente aquele relato
que não tinha como voltar atrás e ouvir novamente, tudo tinha que acontecer em
tempo real e só mais tarde nos era permitido ver o resumo.
Chega o minuto oitenta e dois. Um canto cobrado por Valdo encontra uma primeira cabeçada de Magnusson e Vata mete a bola lá dentro! A explosão de nem sei bem o quê aconteceu no rádio, atravessou-me num contágio cósmico e alastrou a todo o quarto, Big Bang de efusividade dispersando por todo o universo benfiquista. Grito GOLO! e saio disparado pelo corredor para avisar os meus pais; apanho a minha mãe a meio do caminho: tinha ouvido o meu grito e levantara-se do sofá para me vir perguntar o que se passara. Ao ver-me na escuridão que nos separava, oiço-a hoje como então Foi golo? com um meio sorriso de quem, sendo sportinguista, vibra pela vitória do clube nacional e pela alegria do filho. Foi golo! Foi golo! Um a zero! e volto para o quarto, cumprida a missão, para não perder pitada do que restava daquela emoção.
Apanhei a
apreensão do relactor a descrever os protestos dos jogadores do Marselha Atenção!
Atenção porque parece que o golo de Vata foi com a mão... e eu a rezar
interiormente para o árbitro não anular o golo, Deus não podia permitir tamanha
desilusão depois daquele êxtase! Não permitiu e o Benfica seguia para
a final! Estávamos na final e o rádio havia sido mágico nessa noite memorável
da infância.
Mais tarde, não
havia uma única repetição que deixasse margem para dúvidas: a mão de Vata era
uma realidade e o golo deveria ter sido anulado. O VAR ainda vinha longe e, depois do apito final, nada
havia a fazer (a Inglaterra havia ganho um campeonato do Mundo vinte e quatro
anos antes com um golo inexistente). Hoje há coisas que melhoraram: o VAR veio
repor a verdade e lances como aquele (apesar de Vata ainda hoje jurar que o seugolo não foi marcado com a mão! Um negacionista?) não de repetiriam. Estava consumada a maior dúvida
existencial da minha vida: Deus só podia existir para permitir tamanha
calamidade, mas ao mesmo tempo, era impossível deixar aquela mão sub-reptícia passar.
Hoje não existe mais Deus, mas existe VAR. Ainda que naquela noite mágica
de há muito, muito tempo, a ordem das coisas fosse a inversa: só assim eu pude,
na solidão sombria do meu quarto, acompanhado por cento e vinte mil nas
bancadas e algumas centenas de milhar agarradas ao relato por todo o país, ver
uma alegria que não via, mas que imaginava estar a acontecer ali, a vinte
quilómetros de casa, e vibrar como poucas vezes voltaria a experimentar.
Afinal, há coisas que só a infância é capaz de criar. Ainda bem que hoje existe
VAR. Ainda bem que naquela altura não existia: teria ficado com um trauma para
a vida.
Rinchoa, 6 de Dezembro de 2022
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