A fotografia evoca em mim o que a vida tem de melhor.
Foi tirada na tasca do peregrino, em Lisboa, num convívio entre
amigos feito de coisas simples, o melhor que levamos. Depois do segundo
Caminho, em 2019, fui pela primeira vez à tasca para uma patuscada e fiquei fã.
Ainda que não me tenha feito presença assídua (não sou muito assíduo de quase
nada pois apetecem-me demasiadas coisas), aqui e ali fui (mais tarde:
"fomos") aparecendo e aconteceu mais uma jantarada com gaita galega e
poncha.
Julgo ter sido na segunda visita à tasca (ou terá sido na terceira? Bem,
na quarta não foi de certeza) que, em volta da mesa corrida, com queijo, vinho
e alegria, partilhámos vidas sob o mote do que era comum – o Caminho de
Santiago – embora pudesse ser uma jogatana de futebol, uma tertúlia de cinema
ou o aniversário de um amigo. Ou somente a vontade espontânea de estar à
mesa com amigos e conhecidos a saborear a vida.
Há sempre risadas e anedotas (daquelas que não se podem tornar públicas,
dados os actuais riscos de cancelamento), conversas laterais e olhares furtivos
atentando a detalhes que escapam a outros, como outros terão notado aspectos de
que nem faço ideia terem acontecido naquela noite.
A meio do convívio, com a aceleração simpática de quem solta o corpo e a
língua sem que nenhum ande pela tasca demasiado à solta, e que mais tarde se
possa vir a arrepender, chega a hora da sobremesa. E o Carlos foi ver o que
havia sobrado do dia de modo a aproveitar as iguarias para nosso deleite.
Disse-nos ter "só" bolos de pastelaria e aquele "só"
depressa foi transformado numa festa: houve logo quem sentenciasse Chega
perfeitamente! e, rapando o fundo de lucidez e criatividade que
nos restava, tratámos de dividir os bolos disponíveis, como Jesus fez
com o peixe e o pão, de modo a que todos pudéssemos adoçar a língua e
reconfortar o estômago com um docinho depois do jantar.
[Aqui, devo interromper o relato para assegurar que os “pijamas” como
sobremesa sempre saíram caros à minha gulodice e nunca fui fã desta partilha
comunitária das coisas com açúcar. Batatas fritas, bacalhau com natas ou até as
fatias dos queijinhos de entrada, partilho de bom grado. Agora as sobremesas...
essas são sagradas, é o momento para o qual normalmente me guardo
numa refeição e que merece uma atenção, disposição, expectativa, preparação,
etc... especiais. Quando alguém se sai com um E se experimentássemos um
pijaminha? Assim dividíamos por todos... a minha veia anti-comunista dilata,
quase a ponto de rebentar. É como ouvir um impropério daqueles que também
não se podem escrever aqui, do tipo E se fôssemos todos apanhar no cú?,
perguntas às quais invariavelmente respondo da mesma forma: Comam vocês que
eu cá como sozinho!. O individualismo da sociedade dos nossos dias... eu
sei. Mas é a vida, e é também uma sobremesa, e tanto com uma como com outra, a
decisão é nossa!]
De volta ao Pão, Amor e Fantasia, título com que legendei a
fotografia quando a partilhei, em Abril de 2022, recordo o dia em que vi a
travessa com os bolos esquartejados e admirei a engenhosa solução, a
simplicidade à disposição de todos. Lembro-me da perspectiva que, de onde
estava, tive daquele colorido açucarado de amizade e à minha mente subiram
de imediato dois momentos: uma ideia e uma memória.
A ideia foi a da facilidade com que podemos transformar a vida com
pequenos gestos de simplicidade que se fazem grandes: como uma criança brinca
com uma bola de trapos, também nós partimos os bolos que iriam para o lixo e os
transformámos no mais saboroso bolo de aniversário: naquela noite, o gosto
estava muito para lá da iguaria servida (daí eu ter alinhado no pijama).
A memória veio da legenda: Pão, Amor e Fantasia. A expressão
foi-me introduzida pelo Javier depois de uma aula de espanhol. Eu nunca havia
visto o filme que conta com De Sica e Lollobrigida nos principais papéis (até
hoje não vi) e ele – o Javier – empolgado como lhe era costumeiro, Es todo
lo que nosotros necesitamos para vivir: Pan, Amor y Fantasia! Un hombre no
necesita de más António! Qué título! e era quase verdade. Claro que um
mínimo de Saúde poderia completar o arranjo, mas de facto, naquelas três
palavras está quase tudo o que uma pessoa precisa para viver. E aquela travessa
viva de bolos alegres, que nos devolvia os sorrisos que nós, em volta, lhe
lançávamos, com cânticos e aplausos, brindes e conversas, disparando perdigotos
para o prato onde iríamos comer, aquela travessa, da perspectiva a que me
encontrava, trouxe-me de uma forma tão clara essas três palavras – Pão, Amor
e Fantasia – como poucas certezas que temos na vida.
Não parece muito, mas foi tanto o que esse momento plantou. Não me
recordo de qual o convívio que esta sobremesa rematou, mas lembro-me
perfeitamente do que senti no momento em que aquele arquipélago de fantasia
desceu sobre o mar revolto de uma mesa desfeita após a refeição. Tirei a
fotografia. E se uma fotografia é muito mais acerca do que ela não mostra do
que sobre o que lá está, poderia continuar a desfazer-me em palavreado mais ou
menos descritivo, emotivo, sensorial, que nunca alcançaria um décimo do
que ali senti. Ainda assim, julgo que a foto reflecte bem, mesmo que em escassa
medida, o Pão, o Amor, e a Fantasia!
Ainda bem que a tirei: ler este texto sem esse enquadramento fá-lo-ia
tão mais pobre.
Lisboa, 4 de Outubro de 2023
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