Andreas Brehme


Comecei a ver futebol no final da década de oitenta, e para os amantes do desporto-rei, existe quase sempre uma (grande) competição que, por ser a primeira, por ser o primeiro palco onde vemos tantas estrelas e ídolos actuarem e fazemos por não perder pitada, por tentarmos reter todos os resultados, apontá-los num papel, preencher os quadradinhos no calendário que vinha na revista ou no jornal desportivo, ver jogo após jogo com os pais, decorar os nomes dos jogadores quando mal sabemos um idioma estrangeiro, e maravilharmo-nos com aquela magia que o olhar de criança coloca no estrelato inatingível do mundo dos crescidos, dizia eu, existe sempre um grande evento que fica gravado para sempre.

No meu caso, a grande competição que marcou a minha entrada em definitivo no mundo do futebol foi o Italia90. Aparentemente, pelo que leio sobre esse mundial de futebol, não foi um grande torneio: poucos golos, jogo na retranca (ou não fosse em Itália) e demasiado calculismo. Ao ler hoje tais opiniões, tenham elas sido proferidas na altura ou em retrospectiva, sinto um sobressalto: como é possível estarmos a falar da mesma competição que me fez vibrar, em que memorizei os nomes de todos os guarda-redes titulares, e em que, com o decorrer dos jogos, naturalmente fui torcendo por duas selecções e admirando tantos jogadores.

A Argentina, campeã em título, entrou a perder com os Camarões (uma das selecções que me conquistou) de Roger Milla. Ao segundo jogo, contra a URSS, Nery Pumpido parte a perna, entrando para o seu lugar Sergio Goycochea, o guarda-redes suplente e herói improvável (e um dos meus heróis na competição), gigante nos penalties e que levou a Argentina à segunda final consecutiva. Final essa decidida… num penalti, marcado por Andreas Brehme, o defesa esquerdo que morreu hoje de ataque cardíaco.

No dia da final eu torcia pela Alemanha (ainda era RFA), dadas as queima-roupas com que a Argentina foi secando os adversários, ora com golos de Caniggia, caídos do Céu, ora com exibições inspiradas de Goycochea. Naquele penalti, já próximo do final do jogo, tive medo: Brehme, franzino em frente ao gigante argentino e carrasco de tantas selecções, foi chamado a marcar. Tivesse a bola sido chutada cinco centímetros mais para a esquerda, e teria ido ao poste; vinte centímetros mais para a direita e teria sido defendida.

Brehme, Mathaus e Klinsmann formavam o tridente alemão que conquistou o mundial e no ano seguinte ofereceria ao Inter a taça UEFA, no tempo em que era em Itália que acontecia futebol. Essa selecção alemã ficou em mim até hoje, mítica, do design do equipamento à classe do treinador – o Keiser –, dos remates de Mathaus à escarra no cabelo de Rudi Voller, da vitória final à vingança sobre a Holanda, dois anos após o Euro88 (que não vi).

E foi nesse jogo contra a laranja mecânica, que os germânicos venceram por dois a um, que Brehme marcou um dos melhores golos do torneio. Estava numa festa de aniversário em casa de um amigo, junto a uma televisão onde passava o jogo. Creio que era o único no meio dos adultos a torcer pela Alemanha. Não tinha as referências do outro tridente, o holandês – Van Basten, Gullit e Rijkarrd (o escarrador no cabelo de Voller) – e como tal, era livre para desbravar o caminho das primeiras vezes, agarrar o critério mais à mão, como o equipamento mais bonito ou os jogadores mais elegantes, e festejei o maravilhoso remate em arco de Brehme perante um impotente van Breukelen. Um golo que foi uma obra de arte e o número três da camisola a subir bem alto no festejo rumo ao título. Um defesa esquerdo seria o herói improvável do torneio.

Brehme morreu hoje e eu perdi uma referência. Na altura, era normal pensar que a maioria dos jogadores haveriam (se tudo corresse bem para o meu lado) de morrer antes de mim; hoje já não é assim (apesar da morbidez deste pensamento), mas saber que um jogador que tanto me empolgou aos nove anos partiu aos sessenta e três confronta-me que esse sistema impossível que é a morte, com a perda de uma memória viva e tão importante desse bonito evento, que nos mostrou Roger Milla a dançar com a bandeirola de canto depois de bater René Huiguita, que me deu o prazer de ainda ver jogar Peter Shilton e a maravilhosa Inglaterra de Robson (que na meia-final sofreu mais um golo de Brehme!), a Itália com a constelação a abrilhantar o torneio, e a Mannschaft triunfante.

Franz Beckenbauer faleceu há mês e meio. Tinha setenta e oito anos. Brehme, seu pupilo naquela RFA que de uma assentada vingou o Euro88 diante da Holanda e o México86 frente à Argentina, era quinze anos mais novo. O Italia90 começa a apagar-se como acontece com tudo na vida: primeiro memória, depois vira história. Acontece que o San Paolo, o San Siro ou o Olímpico de Roma foram os palcos onde me estreei como espectador. Trarei sempre essa memória, agora mais ainda, que um dos jogadores de que mais gostei naqueles meses de Junho e Julho de 1990, não pode mais contar a sua versão daquela Itália.

Foi preciso um artista morrer para eu regressar a 1990, a Itália e à infância, ao Mundial que não foi grande coisa, mas que foi o torneio da minha vida. Foi preciso morrer Andreas Brehme para eu revirar, rebuscar, repescar tudo isto e tanto mais que ainda cá fica por dizer, aos confins da lembrança, onde não havia internet nem tv por cabo e os jogos passavam em canal aberto, onde os jornais e o Domingo Desportivo eram tudo quanto tínhamos para devorar as notícias do mundial, e onde assinalar a lápis mais um resultado nos quadradinhos do calendário do torneio, que tristemente ia sendo preenchido rumo ao inevitável final – RFA 1 – Argentina 0 – nos enchia de estatísticas e de sabedoria. O Italia90 não acaba aqui. Nunca acabou e não é agora, com a saída de cena de um dos seus maiores intérpretes, que ele termina. Um dia talvez seja só mais um torneio perdido no meio dos muitos que formarão a lista infindável de um qualquer almanaque; por agora ainda não chegou esse tempo. Para mim nunca chegará. A Andreas Brehme, como a tantos outros desse Verão de 90, resta-me agradecer a magia que trouxeram a um miúdo de nove anos.

Rinchoa, 20 de Fevereiro de 2024




Comentários