Foram algumas
as experiências de ressurreição que a Literatura me ofereceu, demonstrando que
talvez um dos pressupostos mais inverosímeis do Cristianismo não estivesse,
afinal, assim tão imbuído de um certo devaneio colectivo. Claro que uma
diferença fundamental entre a ressurreição que testemunhei e essa outra,
do filho de Deus, é o sentido em que a emprego – a ressurreição artística – bem
diferente do regresso à vida de carne e osso do corpo de Cristo.
Ainda que a
morte (sempre a morte) teime em visitar-nos demasiadas vezes durante a
vida, e por menos sentido que faça continuarmos a abrir-lhe continuamente a
porta, sabendo de antemão que um dia virá em que, queiramos ou não, ela
escancarará essa mesma porta com um pontapé mais forte do que toda a nossa
vontade reunida e entrará de vez em nossa casa, continuamos a discorrer sobre
ela, a mimá-la de uma importância que ela não tem, ou não deveria ter, uma vez
que depois dela, é o nada, para sempre.
Porquê
preocuparmo-nos então? Porque não conseguimos largar este desejo tão terreno de
permanência na memória das gerações. Perduraremos sim, como átomos que se
descolam para se voltarem a ligar noutros compostos, seres, objectos, gases.
calhaus, ...
Voltando à
sobrevida com que a Arte, e em concreto a Literatura por vezes premeia os seus
intérpretes, mesmo que os próprios, com muita pena minha (esta pena tão
terrena) já nada possam sentir e pior, nunca tenham tomado conhecimento de tal
importância, pena essa alicerçada numa admiração deixada a marinar no
interregno de esquecimento que medeia a morte do escritor e o momento em que um
crítico descobre um livro e se vê transformado pela sua leitura, tenho
testemunhado algumas ressurreições através de escritores mortos, redescobertos,
renascidos.
Augustus aguarda pacientemente na estante da sala pelo momento
solene da leitura. Depois dela, nada mais me restará para ler de John Williams,
escritor norte americano que atingiu a fama cerca de vinte anos após a sua
morte com a explosão do maravilhoso Stoner. Seguiu-se Butcher's
Crossing, outra pérola, e depois mais nada (o quarto romance de Williams é
uma obra menor, que não entra nestas contas).
Tanta Gente, Mariana foi outro murro no estômago, daqueles
cuja leitura se desfez como manteiga sobre pão quente, numa sequência de
histórias tão tristes quanto verossímeis que me levou ao segundo livro da
inacreditavelmente subvalorizada Maria Judite de Carvalho, As Palavras
Poupadas. Por vezes (ou quase sempre), ter por marido um escritor famoso
não ajuda. Ler as suas palavras é como voltar a ser criança para descobrir o
mundo outra vez, ou a escrita, límpida e pura, e admiramo-nos.
Manual para Mulheres de Limpeza levou-me para fora de órbita, e
ensinou-me que no quotidiano podem viver insectos mais interessantes do que reis
poderosos, gurus inspiracionais, épicos, dramas ou policiais. Lucia Berlin
regressou à vida (pela qual passou sem conhecer o estrelato) por tantos de nós
que aprendemos a amá-la, que a convidámos a entrar e ficar na nossa vida. E que
vida a sua! Anoitecer no Paraíso quase fechou a sua primorosa colecção
de relatos da vida real. Por enquanto, ficam por ler os apontamentos da sua
autobiografia (como se os contos não o fossem). Uma pena.
O Segredo de Joe Gould lançou Joseph Mitchell, um dos melhores
cronistas do século passado e um ícone da The New Yorker para o Panteão
dos Escritores Esquecidos. Nova York é muito mais Nova York depois da
leitura das suas histórias de gente desinteressante que coloriram a vida da
grande cidade na primeira metade do século XX. Sou Todo Ouvidos e O
Fundo da Baía completam a trilogia editada em português. Para quando a
coragem de uma nova tradução?
Aqui chegados,
é com entusiasmo redobrado, mas expectativa moderada que aguardo pela leitura
da próxima ressurreição de mais uma escritora esquecida: Alba de Céspedes. O
Caderno Proibido entrou em casa recentemente, mas necessita de algumas
semanas ou meses para apurar, fazer-me crescer água na boca, perder o acetinado
de novo para se revestir da beleza de pó e bolor que dá gosto sacudir antes de
experimentar algo que já o foi para alguém.
Cristo pode não
descer à Terra, mas esta gente, personagens de tantas histórias quantas as
vidas dos leitores que os fazem renascer, descem mesmo à terra de cada vez que
um livro é aberto e as palavras ecoam nas consciências de quem nelas mergulha.
Um prazer e um orgulho fazer parte desta legião de obreiros do
verdadeiro milagre que é resgatar do esquecimento gente a quem a vida que
lhes calhou não foi capaz de o fazer. Talvez tivesse mesmo que ter acontecido
assim.
Lisboa, 15 de Julho de 2024
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