Preto e Branco
Constatei há semanas, enquanto procurava um filme para ver, da
dificuldade em encontrar filmes da chamada “idade de ouro” do Cinema nos canais
por cabo do pacote base. Há filmes antigos, mas são sempre os mesmos, rareando,
no entanto, aqueles filmados entre as décadas de 30 e 50, sobretudo o noir (40/50),
as comédias românticas (30/40) e algumas das obras mais emblemáticas desse
período.
Eu queria ver um filme de um determinado género e, ao pensar nesta
vontade, percebi não ser ela órfã do meu olhar presente sobre uma obra feita há
oitenta anos. Por outras palavras, não me consigo desligar de tudo o que
aconteceu ao mundo, a mim, ao que sei que aconteceu entretanto nas décadas que
me separam do filme que pretendia ver.
Assim, todos nós, amantes de Cinema, ao apreciar um filme de década de
40, fazêmo-lo não só com aquilo que somos – património genético, familiar e
conjunto de vivências adquiridas na família e na sociedade – mas também com o
que a História fez de nós até ao momento presente. E quem viu o mesmo filme
pela primeira vez há trinta anos extraiu dele algo necessariamente contaminado
por aquele “seu” tempo. Logo, as cinco estrelas que eu possa dar a um filme
podem nada ter a ver com as mesmas cinco estrelas de outro apreciador, por mais
parecidos que sejamos, se nos tivermos cruzado com a obra em momentos
diferentes.
Torna-se assim impossível sermos objectivos na apreciação de um filme:
eu nunca consigo deixar de olhar para um filme a preto-e-branco como embaixador
de um outro mundo em que eu não existia, e essa componente quase saudosista
marca pontos na minha apreciação. O Cinema faz-me acreditar que aquele mundo
era, de facto, a preto-e-branco (e não estou a ser apenas lírico aqui), com as
experiências que então se faziam com o negativo e a película a cores a serem
traduzidas, na minha cabeça, em algo totalmente artificial, contra-natura, e
infinitamente mais pobre, do que aquela beleza sombria e subentendida do
preto-e-branco. Os anos trinta e quarenta nunca foram a cores, como nunca o foi
a II Guerra Mundial! Lamento (ou não), mas não consigo dar o salto para uma cor
que conspurca uma pureza que existia em fazer milagres com o pouco que havia.
O preto-e-branco (também na fotografia) torna-se ele próprio parte da
história que conta. Gosto muito mais de Pagos a Dobrar, Casablanca,
A Regra do Jogo ou A Sede do Mal por terem sido filmados a
preto-e-branco e esse factor é incontornável. Há uns anos, a triste tentativa
de colorir Casablanca configurou um atentado pior do que os grafitis
mais ranhosos cuspidos para cima do Guernica, por exemplo. Imaginem
alguém tentar colorir o Guernica por considerar que ficava mais alegre
ou actual.
Exemplos contrários são E Tudo o Vento Levou e, sobretudo, O
Feiticeiro de Oz (este joga com a própria cor como parte activa da
narrativa), filmados originalmente a cores (em 1939!), e que, pese e fraca
qualidade da mesma na altura, ela, a cor, ficou para sempre tingida nos filmes
como uma marca, até distintiva, em relação aos concorrentes do seu tempo.
Tais filmes, caso fossem feitos hoje como o foram na altura, ou caso eu
os tivesse visto então, a minha opinião teria sido completamente distinta. E
não o digo tanto pelo que o conhecimento da História trouxe à minha vida, mas
pelo que tais filmes, feitos do modo como foram, representam do tempo em que
nasceram. O tempo de permeio, à boleia do preto-e-branco, encolhe-se de cada
vez que vivo um desses filmes, e então é possível viajar no tempo.
Um tempo onde uma sociedade mais infeliz olhava para um estrelato
impossível e enganador e sonhava lá chegar. O saudosismo é traiçoeiro, e hoje,
felizmente, ele vai sendo desmascarado (por exemplo, na obra Judy, Renée
Zellweger, traz-nos o inferno porque Judy Garland passou desde criança às mãos
dos directores dos estúdios, e que lhe destruiu a vida), mas também é ele que
nos permite depositar uma camada de sonho sobre outra de terra. Em Regresso
ao Futuro, os anos 50 são uma época fantástica, e no entanto, a segregação
racial e a caça às bruxas estavam no auge.
Ainda assim, separando o trigo do joio entre o que “não era assim tão
bom” e o que “nos chega com a magia de outra época”, cabe-nos olhar
para o passado e permitirmo-nos sonhar com a possibilidade de abrirmos uma
janela para o preto-e-branco, percebendo não obstante que não só não devemos
acreditar em tudo o que a tela nos mostra, como devemos depositar um olhar
crítico sobre o passado. Não de acordo com os critérios de hoje (seria só
estúpido), mas de acordo com o que sabemos hoje que já então era anacrónico. O
preto-e branco que nos deslumbra com o uso da luz é o mesmo que esconde o seu
lado mais sombrio.
Família
Vimos esta semana um documentário na RTP 2 sobre o filósofo alemão
Immanuel Kant. Neste ano de 2024, celebra-se o tricentésimo aniversário do seu
nascimento e de imediato estabeleci um paralelo com a minha avó, que faria
hoje, neste dia 22 de Setembro em que escrevo, 104 anos.
Ainda são duzentos anos de diferença, mas temporalmente, a minha avó não
está tão longe de Kant e do Iluminismo, o que faz dela uma figura histórica na
árvore da minha vida. Nascida em 1920, e tendo sido a única dos meus quatro
avós com quem conversei (não conheci um avô e os outros dois morreram tinha eu
quatro e seis anos, tendo passado os últimos anos doentes), a história que me
contava da sua vida sempre me fascinou: a mãe morreu-lhe muito nova e, palavras
suas, “o meu pai não voltou a casar para não fazer a desfeita de substituir
a mãe às duas filhas”, a minha avó e a minha tia-avó, dois anos mais nova.
Tudo isto era História para mim quando eu era criança, e assim continuou
vida fora. As histórias de família com quarenta ou cinquenta anos eram para
mim, nos meus sete ou oito, episódios do Paleolítico ou da Idade do Fogo, bem
como a casa onde o soalho e as mobílias rangiam, os bibelots que deveriam ter
sido bonitos em tempos, como os naprons, os candeeiros ou o tampo de mármore da
bancada da cozinha, no canto da qual se situava a pia. O tanque de cimento,
servia para brincarmos quando a roupa não era lá lavada. Só os livros do meu
avô da colecção Vampiro resistiam à erosão do tempo. Os livros têm essa
força.
A minha avó era História para mim e, ao perceber que ela estava sessenta
anos mais próxima de Kant do que eu, tal constatação tornou-se mais aguda.
Todos seremos História para alguém. Provavelmente, na idade em que
estou, dobrados os quarenta, já o serei para os meus sobrinhos mais novos.
Constatarmos que figuras que estudámos nas aulas de História ou de Filosofia como
“de um tempo muito antigo”, como era para mim o tempo de Kant na altura,
estão próximas do avô ou bisavô da minha avó, fez o meu mundo um pouco mais
curioso. Kant morreu em 1804; a minha avó nasceu em 1920. As duas datas distam
quase o mesmo (116) do que o passado desde o nascimento da minha avó (104).
Pouca novidade (ou até mesmo substância) há nestas considerações pois o
mundo é como é e o tempo vai correndo, sempre, num só sentido (até ver).
Começar a notar estas relações ancestrais, sobreposições temporais que jogam
com as referências da nossa infância, as primeiras que tivemos, é sinal de que,
também para mim, o tempo começa a ser não só um mar longínquo que se estende no
futuro à minha frente para navegar sem fim à vista, mas um início que vai
fugindo lá atrás, transformando-se em História, mesmo que por ora seja apenas a
história da minha vida.
No meu tempo, Naquele tempo, etc… são formas com que começo a iniciar algumas
frases. Faz parte, e ainda bem que continuamos a construir a História.
Começarmos a ter consciência de que fazemos já parte dela, ou pelo menos de que
somos testemunhas de acontecimentos e personagens que um dia venham a ser
lembrados (pelas melhores ou piores razões), reforça a necessidade de
aproveitar a vida.
Mas a convergência do tempo da minha avó, daquele que ela me contava em
criança, para os últimos tempos do grande Immanuel Kant, tendo de permeio
somente duas gerações, é qualquer coisa! Ainda bem que o documentário não era
sobre Nietzsche ou Freud!
Biblioteca de São Domingos de
Rana, 22 de Setembro de 2024
Comentários