Parte I - O Castelo dos Pirinéus



Da leveza com que me recomponho da leitura de uma das mais belas obras dos últimos tempos, uma estranha sensação de Dejá Vu aconteceu-me, e permanece, enquanto prolongo estas linhas. A “coincidência” deste contacto fortuito não terá sido “demasiado acidental”, creio-o, agora que o li.

No entanto, a percepção de ser espectador de algo que me aconteceu antes não será demasiado surpreendente quando estas questões me visitam amiudamente. Como dizia Poincaré, vão trabalhando no subconsciente... aproveitando os "tempos mortos" da nossa actividade cerebral.(Não deixo contudo de me surpreender. Steinn não se surpreenderia. Steinn ficaria maravilhada).
Estas palavras poderiam ser o epílogo da conversa entre Solrun e Steinn, o prolongamento da paixão com que debatiam a possível razão por trás de cada acontecimento, lembrando, ao mesmo tempo um amor ocorrido 30 anos antes.
Um reencontro aparentemente acidental ocorrido numa idílica estância norueguesa, por entre vales glaciares, rios e fiordes, traz de volta a memória de tempos perdidos, em que ambos haviam sido um só e juntos questionavam o sentido da vida, testavam o limite da realidade… e amavam. O trágico acontecimento que os arrancou da realidade que haviam construído havia permanecido um mistério na bruma do tempo e da distância.
Um mistério que a tecnologia se propôs resolver: 30 anos depois, uma troca de mails entre ambos desvenda o que sempre souberam um do outro, aquilo que, com amor construíram e que permaneceu através de mil laços que os uniram, nunca desligando duas vidas que corriam em paralelo nas correntes da realidade. Há diferenças que podem ser incompatíveis. Solrun estava em Bergen. Steinn em Oslo.

Ciência versus Religião?
Curiosidade versus Conformidade?
Coincidência versus Sentido último?

O que teria afastado para sempre (o para sempre dura apenas até ao próximo encontro) dois jovens de 25 anos? Ela estudava História da Arte, ele estudava Ciências. Ela acreditava que tudo acontecia por uma razão. Ele acreditava em coincidências. Afinal de contas, um acontecimento improvável tem (alg)uma probabilidade de ocorrer…
A presença do Fantástico reflecte a percepção com que um ser se maravilha com a realidade que habita, ou cria, ou recria, ou imagina… porque no mundo de Gaarder, à semelhança de 2001 – Odisseia no Espaço, as respostas não são fechadas mas sim pontos de partida para novas buscas, pontos da curiosidade apaixonada que, segundo Carlos Fiolhais, era o motor da Ciência… o que é real pode não o ser e o que é ficção poderá ser a realidade onde nos movemos. Talvez nos voltemos a encontrar noutro lugar e recordemos este como um sonho dizia Gaarder num outro romance. Neste momento, em que recupero de um abalo inesperado, tenho a certeza de que Solrun e Steinn estão juntos. E com eles está Niels Peter. Porque é assim que o mundo faz sentido.
Jostein Gaarder possui aquilo a que Alberto Caeiro chamou o pasmo essencial, a maravilha inocente perante a Criação. Ao mesmo tempo possui a dúvida permanente que permite formular as questões que qualquer criança se lembraria, mas com a dificuldade para a qual o maior dos sábios poderá não ter resposta.

Ao testarmos os limites do conhecimento, confrontamos a nossa própria natureza num jogo destemido de quem sente o prazer em compreender. É arriscado questionarmo-nos no mais fundo de nós mesmos pois nem todos estão preparados e os nossos alicerces podem abalar. Mas quando conseguimos destapar um pouco mais do véu, ainda que ao de leve, a felicidade que experimentamos por termos dados mais um passo no (re)conhecimento daquilo que constitui o âmago daquilo que sentimos ser a Verdade é a melhor das recompensas. Sobretudo, se tal revelação confirmar a visão que possuíamos.
Desprendemo-nos aquilo que nos foi incutido (nunca o conseguimos totalmente) para passarmos a tomar verdadeiramente conta da nossa vida. É este o desafio que Jostein Gaarder nos vem propondo desde O Mistério do Jogo das Paciências.

Qualquer adolescente percebe a linguagem de Gaarder.
Apenas alguns adultos arriscam a busca por ele proposta.

Assim como sinto esta enorme vontade de me encontrar com a misteriosa mulher de vestes cinzentas e xaile cor-de-rosa (ou deverei dizer a Mulher Mirtilo-Vermelho?), gostava de visitar o Castelo dos Pirinéus do quadro de Magritte, suspenso no equilíbrio perfeito da sua majestade, enquanto corre, pacífico, o oceano da realidade a seus pés. Ou será que do Castelo da nossa realidade avistamos o sonho imenso espraiar-se num manto azul?
Procurarei as composições de Debussy e os Nocturnos de Chopin.
Relembrei o Teatro Mágico – Só para Loucos!, palco da sonhadora realidade em que se movia Harry Haller, alter-ego de Herman Hesse em O Lobo das Estepes. Senti o terror de Raskolnikov, no Crime e Castigo de Dostoievski revivido na angústia de um jovem casal, na fuga ao acontecimento que os afastaria por décadas.

Sinto que, de todos os que tiverem a sorte de ler esta obra, apenas 1% desses leitores ficarão mais maravilhados do que eu. Não que eu tenha reservado um lugar especial entre os leitores de Gaarder ou mesmo no teatro do mundo. Apenas sei que, embora muitos possam pensar o que eu pensei aquando desta leitura, ninguém sentiu o que eu senti e, muito menos interpretaram o que eu interpretei. Porque o momento da vida em que as experiências nos encontram determina aquilo que delas extraímos.
É esta curiosidade que move o sentimento do que vejo. E é do desespero do abalo que nasce a força na crença a que uns chamam Fé, outros Optimismo, outros Autoconfiança. Terá o Universo consciência de si mesmo? E será Deus? A Ciência? O Sobrenatural? Não serão os fenómenos naturais o verdadeiro milagre de Deus? Não andaremos perdidos à procura do Sobrenatural quando a maravilha da Criação é a sua própria existência?

Não sei. Ou começo a saber… mas só me lembro dos últimos 30 anos. Ainda há muito para percorrer…

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