Fim de tarde

Desde há muito que o melhor momento do dia é o fim da tarde.
De semana ou fim-de-semana, é um momento de descontracção, reencontro, vida.

Entre o desporto e o cinema, preencho os intervalos com períodos de introspecção ou convivência. E o que desporto e cinema têm de tão fantástico é preencherem aquilo que sou. Sinto-me mais vivo quando usufruo da sua experiência porque reconheço que sou eu que os vivo. Não é mais ninguém nem é por mais ninguém. E posso gozá-los com igual prazer em grupo ou só, dependendo da disposição e oportunidade.
Nada substitui, contudo, os sentimentos profundos do que nos constitui enquanto pessoas, sobretudo o Amor. A Amizade, a camaradagem, o divertimento, o sofrimento, … tudo é mais valioso do que a “aparentemente simples” experiência de algo que aparenta não ter qualquer calor humano como uma corrida ou um filme. No entanto, sem estas, não conseguiria tirar o proveito que tiro dos sentimentos mais profundos que experimento, pois, enquanto pessoa, nunca estaria completo.
Tudo faz parte daquilo que sou.

Um final de tarde de cinema, seja após um dia de trabalho (mais comum) ou num epílogo de tarde de fim-de-semana, constrói a magia da abstracção momentânea da realidade. Por mais banal que seja o argumento, por mais reais que sejam as personagens, a partir do momento em que as luzes se apagam e o som da máquina de projecção se faz ouvir, entramos numa nova dimensão. Entramos num sonho. E é tão fantástico ter esta consciência de que temos a capacidade de sonhar acordados!
A Cinemateca possui um especial encanto dentro desta disposição onírica: assistir a um filme nesta casa é uma viagem no tempo… ao tempo da magia do cinema, ao tempo dos teatros e das grandes estreias, ao tempo do cinema mudo e do filme negro, ao tempo do glamour e da altura em que quantidade e qualidade andavam de mãos dadas. Porque hoje também há qualidade, e muita. Não há é tanta quantidade.
Poder sentir um filme de John Ford, Fritz Lang ou Charlie Chaplin, e recriar o pulsar da novidade cinematográfica original, numa sala de Lisboa em pleno século XXI é algo pelo qual nos deveríamos admirar de ser possível (e até mesmo tão fácil) de disfrutar. E só custa 2,50 €!
Sentir, e ter a percepção de sentir este acontecimento é conseguir regressar à magia de Cinema Paraíso (não simplesmente reproduzi-la, mas senti-la de novo em cada momento) – Uma artificialidade transposta com naturalidade para uma realidade tão actual quanto verdadeira… e no entanto, a tela mostra um tempo que não existe mais a não ser quando percepcionado. É meu. E é de todos porque acontece.
Tudo isto se torna muito mais vivo, mais nítido quando é fundido na magia do final da tarde
Tenho sorte em ter a Cinemateca no trajecto para casa, sorte em trabalhar em Lisboa, algo de que me queixo, por me roubar tempo ao sono, mas que me permite sonhar de outra forma.

Contraponto do desporto, cinema e corrida, (o cinema não em qualquer cinema e a corrida não em qualquer cenário), constituem as experiências solitárias (nem sempre) mais enriquecedoras para o que sou. É “simplesmente” isso.

Praia, correr, cansaço, mar, pôr-do-sol sobre Cascais… sem música… apenas o som das ondas de um lado, carros, comboio do outro. O som do meio do qual pretendo disfrutar. É a pureza do local que me move. A última curva da muralha, contornando o antigo tribunal, atrás da qual Cascais se apresenta em todo o seu esplendor, enquadrado pelo pôr-do-sol soalheiro, código de barras em prédios e construções contra o jogo de luz do tempo quente banhando a mais bela baía do mundo.
A corrida é o alheamento supremo, é o pensar em tudo e em nada ao mesmo tempo. É fazer bem ao físico e à alma sem ter tal propósito. Simplesmente… é correr porque dá prazer.
Porque o desporto faz bem ao corpo e o cansaço faz bem à alma. Corpo e Alma são renovados. Renascem após cada corrida. Paradoxalmente (ou talvez não), do cansaço nasce a disposição para um novo começo, estar pronto para novo dia, nova actividade, mais vida. E contudo, não deixo de me sentir exausto, cair na cama e recolher de novo a energia libertada.
Um médico disse-me um dia, que eu era melhor aluno por praticar desporto (entre natação e atletismo – praticava desporto 6 dias por semana). Tinha razão. Praticava-o quase sempre ao final da tarde, e era a melhor forma de fechar o ciclo do dia de trabalho (de estudo, na altura). Hoje sinto que é uma das melhores (não sei se a melhor).

PS: Espero que a Cinemateca não encerre, seja por via do FMI ou qualquer outra “desculpa”. Em momentos de crise, a Cultura é o parente pobre e, por isso mesmo, o primeiro a cair. Também por culpa própria, mas muito pela deturpação que assalta a sociedade, de que apenas o que é material, básico ou rentável tem valor.
Sinto assim algum sobressalto, uma sensação de despedida (talvez mesmo tristeza) quando assisto a um filme na Cinemateca. Ao mesmo tempo tal permite-me extrair o máximo de cada experiência, de cada visionamento, concentrar a sensação num momento.

Comentários

Ofélia Queirós disse…
fecharam uma série de salas no Saldanha :(
Ofélia Queirós disse…
http://www.imdb.com/title/tt1340107/
António V. Dias disse…
Contaram-me hoje que fecharam as salas do Residence (mas não do Monumental)...
Juntamente com o King, é o cinema de Lisboa que mais gosto...

Vi o Num Mundo Melhor há 15 dias (no Monumental :) ). A história está muito bem contada, e parte é em África ;)