1950 - O ano em que a máscara caiu

1950 foi um dos melhores anos do cinema em Hollywood, não tanto pela quantidade mas pela qualidade dos filmes lançados, em especial dois que o tempo se encarregou de incluir nos melhores filmes de sempre.
E se hoje parece à maioria dos amantes de cinema que aquele que recebeu o óscar de melhor filme não o deveria ter recebido, em detrimento do outro, à luz de mais de 60 anos de distância pode dizer-se que, qualquer que fosse o vencedor, o prémio estaria (e está) bem entregue.
O outro (o que não recebeu o óscar), ganhou uma dimensão quase mítica, mas, se foi bem recebido posteriormente pela crítica, pela imprensa e pelo público, foi mal-amado por todos na altura, sobretudo pela gente da indústria cinematográfica. Afinal, não deve ser fácil ver os “podres” de uma indústria retratados num filme. O vencedor era neste assunto um pouco mais ardiloso – retratava os “podres” não do cinema, mas dos bastidores do teatro.

O Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd.) é um grande filme. Billy Wilder, que dispensa elogios tal a quantidade e qualidade do seu trabalho, teve aqui o ponto mais alto (entre muitos) da sua carreira. A ilusão do regresso de uma antiga estrela do cinema mudo às luzes da ribalta, é acompanhada de perto pelo cinismo de um jornalista (William Holden) e pela adulação obsessiva do seu mordomo (Erich Von Stronheim). Gloria Swanson é sublime no retrato que faz de Norma Desmond, que bem poderia ser um retrato da sua própria carreira – o filme está, aliás, cheio de referências protagonizadas por “personagens reais”, como a reunião para um jogo de cartas com Buster Keaton e outras antigas estrelas reais do cinema mudo que aqui se retratam. Até Cecil B. DeMille tem uma aparição como… ele próprio.
Exemplo supremo do film noir, O Crepúsculo dos Deuses revolucionou o cinema, tanto na arte de transpor um argumento para a tela como no retrato que consegue traçar de uma indústria que tinha dificuldade em fazer a sua auto-análise.
É um filme notável a todos os níveis.

Eva (All About Eve) foi o contraponto a O Crepúsculo dos Deuses nesse mesmo ano. Joseph Mankiewicz recebe aqui a sua segunda dupla de óscares consecutivas (no ano anterior havia ganho os prémios para Realização e Argumento com Carta a Três Mulheres) e Eva é, sobretudo um magnífico argumento. Durante alguns anos, foi o meu argumento preferido, tal a intensidade da intriga e o modo como somos conduzidos para os meandros das personagens na sua luta quase desumana por um lugar no estrelato do mundo do teatro.
O filme inclui uma galeria de estrelas como poucos, lideradas por Bette Davis e Anne Baxter (ambas nomeadas) e secundadas pelos fantásticos George Sanders (mais uma vez, um cínico jornalista a acompanhar o mundo das estrelas, no papel que lhe valeu o óscar) e Celeste Holm.
A luta pelo papel principal numa peça dá o mote para um conjunto de voltas e reviravoltas apenas possíveis com o auxílio de um argumento magistral apoiado por intérpretes capazes de representar, em cada momento da história, a condição da sua personagem.

Ambos os filmes incluem tiradas e cenas que ficarão para sempre na História do Cinema, como, em Eva, a entrada de Margo Channing (Bette Davis) numa festa em que, ao ver Eva (Anne Baxter) exclama: “Fasten your seatbelts, it’s going to be a bumpy night”, a troca de impressões entre Norma Desmond e o jornalista Joe Gillis (William Holden) no seu primeiro encontro em O Crepúsculo dos Deuses:

Joe Gillis: “You're Norma Desmond. You used to be in silent pictures. You used to be big.”
Norma Desmond: “I am big. It's the pictures that got small.”

... ou ainda a entrada triunfal de Norma Desmomd no final do filme, num supremo exercício de farsa que ficará para sempre no imaginário de até onde poderá conduzir a artificialidade de uma vida que apenas foi real para a própria.

1950 fabricou assim dois colossos da 7ª Arte que, como o vinho do Porto, só melhoraram com a passagem dos anos. Esta é a marca das grandes obras: não só sobreviverem ao crivo cruel do tempo como terem a capacidade de se reinventarem constantemente mantendo-se permanentemente actuais sem no entanto perderem o significado da época a que pertencem.

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