Crónica de Uma Morte Anunciada

A mestria com que Crónica de Uma Morte Anunciada foi escrita é (mais uma) prova do génio que é Gabriel García Marquez.
Li as 100 páginas em dia e meio, há dias e, se há romance que pode servir de exemplo como a arte da escrita para contar uma história, é este.
Deste livro Gabriel García Marquez disse que “acredita-se sempre que o melhor romance é o último; mas eu acredito que este é o melhor romance no sentido em que consegui fazer exactamente aquilo que queria.”. Por incrível que pareça, este romance tem por base uma história real… claro que a roupagem que o autor lhe confere fazem-na ganhar vida própria, sendo o ambiente descrito uma viagem deslumbrante para qualquer leitor, que se encontra no purgatório ora da realidade ora da fantasia, universo tão característico do Realismo Mágico, estilo de que García Marquez é o intérprete maior.
Pena é que este autor não venha a produzir mais nenhuma obra: a terrível doença que o tem atacado, embora possa travar momentaneamente a sua produção literária, não travará o génio, porque esse já é eterno, pelo menos enquanto existir memória colectiva e pessoas que gostem de livros.
A demência ou senilidade, nome que a doença de Alzheimer assume quando atinge um “sénior”, bateu-lhe à porta após os 80 anos. Pior para ela: mostrou a sua fragilidade perante o génio. Durante mais de 80 anos, Gabriel García Marquez venceu a doença com a magistralidade das suas muitas obras-primas. Não é pela cobardia da demência o ter apanhado num momento de fragilidade ao cair do pano que será declarada vencedora.
Das obras todos se lembrarão. Da doença não.
O último romance permanecerá inacabado.

“Dormia sempre como dormiu o pai, com a arma escondida na fronha do travesseiro, mas antes de sair de casa naquele dia retirou os projécteis e pô-los na gaveta da mesinha de cabeceira. “Nunca a deixava carregada”, disse-me a mãe. Eu sabia disso, e sabia também que ele guardava as armas num sítio e escondia as munições noutro sítio bastante afastado, para que ninguém cedesse nem por acaso à tentação de carregá-las dentro de casa. Era um costume sábio imposto pelo pai desde uma manhã em que uma criada sacudiu o travesseiro para tirar a fronha, e a pistola disparou-se ao embater no chão, e a bala escaqueirou o armário do quarto, atravessou a parede da sala, passou com um estrondo de guerra pela sala de jantar da casa vizinha e converteu em pó de gesso um santo em tamanho natural no altar-mor da igreja, do outro lado da praça.”

“Mas recuperou em poucas horas, e assim que recobrou os sentidos pôs toda a gente fora de casa com as melhores maneiras que foi capaz de arranjar.
- Não me fodam – disse. – Nem vocês nem o meu pai com os seus tomates de veterano.”

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