Torre Bela - uma vergonha cada vez mais actual

No dia 23 de Abril de 1975, teve lugar em Portugal a única ocupação de terras “verdadeiramente popular”. Tal deu-se na herdade de Torre Bela, propriedade do Duque de Lafões, em Manique do Intendente, Ribatejo.
Para além da não-partidarização da ocupação, este movimento destacou-se por ter ocorrido num meio não tradicionalmente conotado com a Esquerda (a maioria das restantes ocupações deram-se no Alentejo), e pela (estranha) aliança entre os "ocupas" (compostos por gente de toda a espécie: deste agricultores, delinquentes, criminosos, …) e alguns membros das forças armadas (a “tropa macaca” do movimento popular).
O acontecimento deu origem a um filme com o mesmo nome (Torre Bela, 1975), filmado quase por acaso por um cineasta alemão, Thomas Harlan, que estava em Portugal para filmar as consequências da Revolução e teve como “brinde” a possibilidade de filmar uma ocupação ao vivo.
Embora em tom documental, o filme não tem qualquer relato: apenas a câmara a formar o retrato de uma comunidade entregue ao seu “estado mais selvagem”.

Vi este filme no Festival de Cinema do Estoril em 2010, num ciclo de homenagem a Harlan (que havia falecido pouco antes). E, mais do que um retrato político ou de época, o que retive desta obra foi uma das melhores comédias de absurdo que alguma vez vi em cinema (só que o absurdo aqui era bem real…).
Há cenas que são autênticas “pérolas”, da entrevista do Duque, no início do filme, com os ocupas a ameaçar invadir a herdade (o Duque teve que “fugir” de helicóptero) à discussão entre um agricultor e o líder dos revoltosos sobre os bens dos pobres agricultores passarem a pertencer à “cooperativa”; da entrada no palacete, onde um bando de selvagens apanharam o que puderam e até andaram a passear-se com a jaqueta do Duque à reunião surreal entre os ocupas e as tropas, onde estas os aconselhavam a ocupar primeiro para depois “forçarem” a saída de lei que viesse a legitimar a ocupação!

Torre Bela é um tratado sobre a estupidez.
A utopia do poder popular deu em nada: a herdade foi decaindo de importância até se reduzir a quase nada que é hoje, a “tropa-macaca” foi castigada e nós rimo-nos com um episódio que beliscou o verdadeiro espírito da Revolução: os abusos que viriam a ocorrer no Verão Quente seguinte são um alerta para o aproveitamento que alguns (com ou sem organização política por trás) tentam fazer do heroísmo de quem, convictamente, acreditava no propósito da Revolução.

Fica a comédia: uma comédia que vale muito a pena.

PS: no youtube estão algumas das cenas mais hilariantes do filme.

Comentários