Narciso e Goldmundo


Não li muitas obras de Hermann Hesse, mas, do que li, Narciso e Goldmundo é a melhor. Li uma má (Siddhartha) e três boas (O Lobo das Estepes, Demian e Narciso e Goldmundo). Destes três, é difícil escolher o mais depressivo. Mesmo o melhor, nem sempre se traduz numa escolha pacífica. Mas Narciso e Goldmundo é talvez o mais completo (não o mais complexo).
História passada algures numa época medieval, a amizade, o amor, a arte, a religião, a luta pela autenticidade, pela concretização de um sonho (mesmo sem saber exactamente qual)… todos os ingredientes da vida estão lá.
Narciso e Goldmundo é também a história do conflito entre a Emoção e a Razão, e como pode existir, entre dois seres tão diferentes, uma compreensão superior a toda a “mundanicidade” com que a vida se mascara.
É uma bela história de Amizade, entre dois homens que se respeitam e que respeitam o espaço do outro no mundo. É uma história da procura pelo Amor, representado na odisseia de Goldmundo por uma terra assolada pelos males, e pelo conhecimento que vai travando com as mulheres com que se vai cruzando, para perceber que o Amor é bem mais do que isso. É uma história em que a Arte aproxima dois seres através da obra talhada por Goldmundo, à imagem de Narciso. É uma história em que o conflito religioso interior de Goldmundo lhe permite partir, com a ajuda de Narciso, que reconhece no amigo uma natureza bem diferente da lei e ordem que ele próprio seguia.
Livro poético, introspectivo e honesto...

“Parecia uma despedida e era, na verdade, o antegosto de um adeus. Ali, diante do seu amigo, Goldmundo, ao contemplar aquele rosto decidido e aquele olhar dirigido para um alvo, sentiu iniludivelmente que os dois já não eram irmãos, companheiros e iguais, que os seus caminhos se tinham bifurcado. Aquele que ali estava à sua frente não era um sonhador nem esperava por apelos do destino: era um monge, comprometera-se, pertencia a uma regra firme e a um dever, era um servidor da Ordem, da Igreja, do Espírito. Goldmundo, porém, como hoje claramente reconhecera, já ali não pertencia, não tinha pátria e um mundo desconhecido esperava-o. O mesmo acontecera outrora a sua mãe. Deixara casa e lar, marido e filho, comunidade e ordem, dever e honra e lançara-se à aventura onde há muito, decerto, tinha soçobrado. Não tivera fito algum, como ele também o não tinha. Ter alvos era bom para os outros, não para ele. Oh, como Narciso previra isto de longa data, como tivera razão!”

Herman Hesse in Narciso e Goldmundo [Guimarães]

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