Miguel Ramos - um professor único



Soube hoje que no dia 3 de Janeiro faleceu Miguel Ramos, meu professor na faculdade.

Não tenho escondido de ninguém que não gostei dos meus anos na universidade. Mais: creio que não gosto do ambiente universitário na generalidade pois o mestrado veio confirmar este meu mal estar no meio do ensino superior. E em universidades bem diferentes: dos gigs da FCUL à betaria do ISCTE, conclui que não me revejo nada na impessoalidade com que as relações entre alunos e professores se desenvolvem na Universidade. Provavelmente não é suposto haver proximidade como no secundário ou no básico, mas o não ser suposto não me confere o dever de aceitar este “é assim que deve ser” como uma fatalidade ou com a minha concordância.

Dito isto, devo dizer que o professor Miguel Ramos foi o melhor professor da área da Matemática, que preencheu três dos cinco anos do meu curso, que eu tive na FCUL. Não só pelo excelente professor que foi como por ter mostrado ser uma pessoa completa.
Foi meu professor a duas disciplinas: a Análise Numérica apanhou-me em ascensão: o 11 que me deu na oral não foi mais do que mereci. A Análise Infinitesimal IV, sendo eu já um aluno dedicado, baixou-me um valor na oral, de 19 para 18 e, mais uma vez, mereci o ponto a menos. Até merecia mais do que um ponto a menos pois não soube dar nenhum exemplo de uma função integrável à Lebesgue… ainda me lembro do motivo porque baixei para 18. Lembro-me também da sua expressão enquanto ouvia o meu silêncio à sua questão no meio da oral: “Toquei na ferida não foi?” mas disse-o com uma sinceridade que quase que me fez a mim ter pena dele, pois custava-lhe mesmo dar más notas, baixar notas, … era um professor que entendia ser parte do seu trabalho ajudar os seus alunos sem que tal signifique dar notas de graça. E isto não vemos em muitos professores.

Foi com o professor Miguel Ramos que aprendi verdadeiramente o significado do Integral… em R, R2 ou Rn. Mais do que saber como se fazem as contas através da mecanização, algo relativamente fácil passado o primeiro embate com cada matéria em matemática, Miguel Ramos ensinou-me a entender a construção do Integral, ensinou-me como podemos calcular uma mesma área quer através de um integral simples ou através de um integral duplo, mostrou-me o que é o rotacional, mostrou-me a intuição (antes da noção formal) subjacente ao integral de linha ou de superfície. Numa frase: ensinou-me matemática à séria.

Tive a sorte de privar com ele semanalmente, durante aquele 2º semestre do ano lectivo de 2002/2003, nas sessões de dúvidas que ele dava perto da hora de almoço das 6ª-feiras. Mais do que isso: tive a sorte de lhe ter agradecido pessoalmente a ajuda que me deu na compreensão da matéria (algo que não temos a oportunidade ou a vontade de o fazer muita vezes). E se de início as minhas dúvidas eram efectivamente esclarecidas o que muito contribuiu para que eu não perdesse o comboio e arrancasse para uma das minhas melhores cadeiras na faculdade, a partir de certa altura eu ia ter com ele para tirar as dúvidas que não tinha… e falávamos sobre matemática e sobre o ensino, sobre a importância da escola e sobre matemática de ponta… foram como pequenas tertúlias que não esqueci: “E se P = NP?” perguntava eu em tom provocador a respeito de um dos grandes problemas em aberto da Teoria da Complexidade, ao que ele me respondia “Isso seria capaz de ser um bocado chato”, com o olhar fixado no vazio como que a imaginar o cenário catastrófico perante tal hipótese; “Sou definitivamente contra a escolaridade obrigatória até ao 12º ano.” dizia-me Miguel Ramos, afirmação com a qual concordei prontamente (hoje não tenho tanta certeza); “Carlos Fiolhais escreve primorosamente.” disse-me ele uma vez com deleite. Quando lhe respondi que gostava muito do Jorge Buescu, ele reiterou a preferência por Fiolhais. Na altura apenas o livro “A Coisa Mais Preciosa que Temos” havia sido publicado (“Curiosidade Apaixonada” viria mais tarde). Fui ler o livro e continuei a preferir Buescu. Mas as conversas com Miguel Ramos abriram-me a curiosidade para a divulgação matemática e a grande parte dos livros que li sobre o assunto li-os nessa altura: “O Homem Que Só Gostava de Números”, “A Experiência Matemática”, “The Mathematical Universe” são alguns exemplos de que me lembro para além de Fiolhais e Buescu, embora estes dois enveredassem também para ciência (e não apenas pela matemática).
Miguel Ramos, enquanto presidente do Departamento de Matemática da FCUL, continuou a promover como ninguém o ciclo de conferências “Matemática, Ciência e Arte”. Duas dessas conferências tinham como convidados respectivamente, Carlos Fiolhais e Jorge Buescu. Aquando do primeiro, Miguel Ramos estava numa excitação orgulhosa e quando me viu no anfiteatro a poucos minutos do início da conferência disse-me com um sorriso: “Hoje temos uma estrela, hã?”
Fiquei a considerar Carlos Fiolhais melhor orador do que Buescu, pelo que dou razão em parte a Miguel Ramos na sua preferência.

Miguel Ramos era um homem bom: dos exercícios que me dizia que fazia com as filhas (tinha três filhas pequenas na altura), como os "quizzes" matemáticos quando viajavam em família e aproveitavam as placas dos quilómetros da auto-estrada para treinar a tabuada ou operações com números primos; as suas longas entradas eram absorvidas pelos olhos verdes, a roupa desportivamente descuidada e um ligeiro ar de génio abstraído no seu mundo quando andava pelos corredores da faculdade.
Com quarenta e poucos anos (creio eu) tornou-se catedrático.
Poucos anos depois encontrou-se com a doença que, pelo desenlace, acabou por vencer.
Faria 50 anos este ano.

Comentários

phneutral disse…
Sem dúvida um Professor único. Análise 2 com ele em 96/97 e uma profunda admiração durante todos os anos que frequentei a FCUL. Não fui tão íntimo como o colega, mas foi com pesar que recebi a noticia da sua morte. A discrição que faz do Professor está muito fiel.

Cumprimentos
Hugo


António V. Dias disse…
Obrigado pelo comentário.
Embora eu não tenha voltado a privar com o professor Miguel Ramos, era daquelas pessoas que nunca precisou de se exibir para mostrar que era bom. Simplesmente era-o, e mostrava-o com a sua discrição.

Um abraço
António
Unknown disse…
http://miguelramos.fc.ul.pt/
António V. Dias disse…
Obrigado Clara.
Tentarei ir.

Beijos
António