Sagrámo-nos
campeões da Europa de futsal, um desporto que me diz pouco. Não vou à bola com
desportos de pavilhão, existindo apenas três modalidades de que gosto
realmente: futebol, atletismo e ténis (por ordem). Se acontece interessar-me
por qualquer outra, deve-se a curiosidade a um impulso momentâneo devido a um
atleta específico (aconteceu com o Michael Phelps na natação), uma boa
classificação da equipa que apoio (inúmeros Europeus e Mundiais da selecção
nacional de hóquei em patins) ou um brilharete inesperado (o caso dos “Lobos” no Mundial de rugby em França, em 2007: vê-los cantar
o hino – mais do que ouvi-los – no jogo de estreia frente à Escócia deveria ser
obrigatório).
Não vi o jogo de
futsal em Liubliana onde batemos a Espanha por 3-2 após prolongamento, facto
que, não se devendo na totalidade ao meu desinteresse pela modalidade, diz algo
sobre o assunto.
Acompanhei as
manifestações facebookianas de júbilo
de amigos que assistiam à partida (eu estava mais interessado na vitória do
Benfica em Portimão) e experimentei, creio que pela primeira vez, a sensação
que experimentam os que não gostam de futebol quando todos à sua volta vibram
com um golo ou um falhanço de uma selecção ou clube que para os primeiros pouco
mais é do que indiferente. E no entanto, todo o mérito, dedicação, esforço e
espirito de equipa merecem um reconhecimento igual ao que atribuo a quem atinge
os mesmos feitos no futebol de onze. O que me remete para o dia dez de Julho de
2016…
Mas para
chegarmos a dez de Julho, teremos de recuar um mês, até catorze de Junho, dia
em que Portugal fez a estreia no Euro2016 em França, país-carrasco em três
ocasiões. A expectativa era grande apesar da crença não o ser: uma selecção de
“velhos”, qualificada por Fernando Santos e por Cristiano Ronaldo (começámos o
apuramento a perder em casa com a Albânia!), e cujo habitual espalhafato mediático
que arrastou à sua volta foi por mim inúmeras vezes criticado.
Recordo os
diferentes ambientes em que vi os jogos do Europeu, num crescendo de entusiasmo
até à final no Stade de France e reconheço
um traço que une cada uma das sete experiências que formaram o meu Europeu.
O primeiro
empate, 1-1 frente à Islândia (sim, porque mais do que de jogos, foi de empate
em empate que seguimos até à glória final), foi vivido no Café Império, local mítico de Lisboa que nos últimos tempos tem andado
com a IURD às costas. A única nota digna de registo (o jogo só não foi para
esquecer porque nos levou à final) foi a presença, na mesa ao lado da nossa, de
Francisco George, à data Director Geral de Saúde, pessoa que admiro, tanto
profissional como pessoalmente.
Vimos o jogo
seguinte, com a Áustria, entre amigos, apertados no Júlio dos Caracóis. Novo empate, desta vez a zero, e uma saída
apressada logo após o apito final não me permitiu curtir a desilusão como deve
de ser. Creio ter sido nesse jogo que o Ronaldo falhou um penalti. No dia
seguinte, o Fernando Santos endoideceu e saiu-se com uma pérola que, não fosse
o desfecho da história confirmar a louca previsão de um “optimista fleumático”,
e dir-se-ia que o homem ia sim, mas de patins: “Só vou dia 11 para Portugal e vou ser recebido em festa”! Se calhar
Deus existe mesmo e o Fernando fala directamente com ele! Creio não ser
necessária escrever aqui o que pensei na altura...
Jogámos com a
Áustria no momento errado: após o Europeu, o seleccionador foi substituido e o
novo homem forte do futebol austríaco possibilitar-me-ia apreciar não apenas a
partida dentro das quatro linhas como atentar também ao relato que a
acompanharia: o senhor dá pelo nome de Franco Foda! Temos que nos fazer valer
do nosso estatuto de campeões para pressionar a UEFA a incluírem a Áustria no
próximo grupo de qualificação de Portugal… ou então que todos os amigáveis até
ao próximo campeonato da Europa sejam jogados com a Áustria!
O terceiro
empate foi com a Hungria! 3-3 vistos no escritório, com um balázio encaixado no
ferro e um golo da Islândia nos descontos, no outro jogo do nosso grupo a
colocarem-nos no lado “coxo” do sorteio, retirando do nosso caminho a França,
Alemanha, Itália e Inglaterra! Traustason, o autor do golo islandês aos noventa
e quatro minutos, merece uma estátua feita pelo artista que martelou o
mamarracho do Ronaldo, exposta em todos os aeroportos nacionais. Lembro-me do
guarda-redes da Hungria, cuja idade andava próxima da do Renato Sanches, ter
jogado de pijama.
Com tamanha
fortuna, que ainda hoje estamos para perceber como veio ter ao nosso encontro,
entrámos na fase a eliminar, o “mata-mata” de Scolari, e quase toda a prol de
jornalistas, comentadores, opinadores e outras “dores” para as nossas cabeças
se desfizeram em teorias justificativas: “agora
é que vamos ver o verdadeiro Portugal”, “as equipas encaram os jogos a eliminar de maneira muito diferente dos
da fase de grupos”, e outras aberrações, como se tivéssemos estado em vias
de ser eliminados por opção, estratégia ou calculismo! Poupem-nos.
Padaria do Povo!
Vinte e cinco de Junho! Portugal – Croácia! O novo empate das nossas vidas
visto num novo lugar, desta vez em Campo de Ourique! Só aos cento e dezassete
minutos foi desfeito o nulo (não fomos apenas masoquistas: desta vez resolvemos
também ser sádicos!) pelo mais provável dos improváveis: Ricardo Quaresma! E
com um pragmatismo definido mais pelos resultados do que pela segurança
demonstrada em campo, estávamos nos quartos-de-final! A emoção latina havia-se
definitivamente aliado ao “desenrascanço” lusitano para inscrever um verdadeiro
conto de fadas na nossa História (nas histórias de vida daqueles portugueses
que gostam de futebol, pelo menos).
No jogo
seguinte, com a Polónia, regressámos ao Júlio
de onde não mais saímos! Mesa cheia de amigos de diferentes quadrantes, não
importava de onde nem até que ponto se conheciam: era para apoiar Portugal que
ali estávamos, e ao fim do segundo minuto já tínhamos ido buscar um seco ao
pacote! É chato começar um jogo a perder e quando a nossa incapacidade parecia
fechar o caminho da baliza adversária, eis que surge Renato Sanches, o puto-maravilha
a mostrar ao mundo do futebol como se fabrica a sorte: com arte e muito
trabalho. O golo foi fantástico e o resto do jogo impróprio para cardíacos mas
por esta altura, já todo o país sabia que não valia a pena sofrer do coração
porque, fosse de que forma fosse, ia dar empate. Mas desta vez fomos mais
longe: penalties! Essa lotaria, essa sorte, esse totoloto… como se não
existisse mérito nem demérito no acto de chutar uma bola à baliza ou de a
conseguir defender. Não falhámos um e seguimos para as meias!
O Júlio ofereceu então uma rodada de
imperiais (e repeti-lo-ia em cada vitória de Portugal), agradecendo a nossa
presença com um inesquecível “obrigados”!
Eu não gosto de imperiais. E também não gosto de caracóis. Mas passei a amar o Júlio, santuário talismã daquele mês de
ouro. O jogo seguinte ficou logo reservado!
O País de Gales
era o outsider do campeonato e por
isso tinham pouco a perder o que podia complicar a vida a Portugal que tinha o
melhor do mundo à volta do qual orbitava um sem número de outras estrelas.
Saí mais cedo do
trabalho, apesar do jogo ser só às 20:00, pois não queria correr o risco de
ficar retido no trânsito: afinal, todos os amantes de bola deveriam pensar o
mesmo. Eramos cada vez mais na peregrinação ao santuário juliano, e o jogo decorreu numa toada morna mas, pela
primeira vez em toda a competição, controlávamos a situação e quando dois golos
de rajada sentenciaram a partida, nós, habituados como estávamos a sofrer
perante a incerteza de não saber o vencedor até final (a única certeza que conhecíamos
era o empate), experimentámos uma sensação agridoce: felizes pela vitória,
tristes pela falta de emoção. Na senda da crescente dificuldade dos jogos
anteriores, este só poderia ser decidido com moeda ao ar… a nosso favor, claro!
Nunca estamos satisfeitos! No final desse jogo bebi a imperial para acalmar o
coração que, desiludido com uma segunda parte que em pouco se distinguia de um
filme de Tarkovski, mal conseguia conter as descargas de adrenalina lançadas
pelo cérebro, à espera do habitual empate final. O jogo seguinte ficou logo
reservado!
E o jogo
seguinte era a final!
Íamos jogar a
final do Euro 2016, contra a França, no seu reduto! Agora sim, tudo jogava a
nosso favor. Não sei se a nossa mesa era a maior, mas era servida por duas
televisões que me baralhavam não só o cérebro, como também os olhos e o
pescoço, até conseguir assentar e decidir por aquela que melhor me satisfazia
para poder ver o jogo que eu contava perder. Tive de recorrer a um filmagem de
telemóvel nesse dia para perceber quantos eramos: contei dezanove!
O jogo começa
com uma atitude personalizada da equipa portuguesa mas aos sete minutos de
jogo, o Ronaldo sofre uma pancada do Dimitri Payet e lesiona-se. Ainda se
arrasta em campo por mais dezoito minutos (durante os quais foi duas vezes
assistido) mas teve mesmo de ser substituído. O jogo estava perdido. Se com líder já era difícil, uma equipa sem
líder teria pela frente uma tarefa praticamente impossível. Mas o segredo desta
frase não estava na palavra “líder”: estava na palavra “equipa”.
Sofremos mas
vencemos. Porque tantas vezes é necessário saber sofrer para conseguir vencer,
nós conseguimo-lo. Rui Patrício, com uma exibição de uma segurança “épica” deu
o mote para uma equipa que mostrou uma competência e uma maturidade dignas de
verdadeiros campeões. E a onze minutos do final do tempo regulamentar entra o Éder,
o “cepo”, o “nabo”, o “patinho feio”, aquele que ninguém sabia a razão pela
qual havia sido convocado. Ele ouviu tudo isso e esperou pelo seu momento para
responder da melhor forma que se pode responder a uma crítica:
refutando-a.
A cereja no topo do bolo (ou la crème de la crème), surgiu ao minuto
cento e nove… a expressão “golo do Éder” entrou na memória colectiva, e hoje
todos sabemos a que golo nos referimos quando a proferimos. E não é por ele não
ter marcado assim tantos mas por ter feito “O
Golo”, aquele de que precisávamos para fechar com chave de ouro mais um
empate milagroso e desfrutar de um gozo imenso em ganhar o que ganhámos, como
ganhámos e onde ganhámos. Alguém deveria registar a patente daquele golo para
que nunca, jamais alguém ousasse sequer pensar em igualar tal movimentação,
disparando “do meio da rua” uma bola que todos víamos para onde ia e que, à
medida que se aproximava da baliza, a falta de oposição avolumava em nós a
crença de que o esférico podia, iria entrar mesmo na baliza. E entrou! Numa fracção
de segundo, não sei se vi primeiro as redes do fundo da baliza de Lloris a
abanar ou se ouvi os gritos intempestivos a celebrar uma bola que eu mal vira
entrar. Mas entrou! E foi o Éder quem marcou!
Foi a vitória de
um homem, Fernando Santos, que acreditou num momento em que ninguém o
acompanhou “Só vou dia 11 para Portugal e
vou ser recebido em festa”. Cumpriu. Foi uma vitória de um grupo que,
recheado de estrelas, soube articular-se na melhor constelação disponível para,
juntos, formarem a imagem da equipa que mostraria ao país a beleza do futebol. Foi
uma vitória do sofrimento e da ansiedade (as lágrimas de tristeza do Ronaldo
quando saiu do terreno; as lágrimas de alegria do Ronaldo quando soou o apito
final; as coreografias de Ronaldo e Fernando Santos no banco de Portugal após o
golo do Éder…) e, por isso mesmo,
muito mais saborosa. E foi uma vitória que chegou com uma década ou duas de
atraso, quando a “geração de ouro” tanto prometia, mas que nos mostrou que, ou
a vitória da Grécia em 2004 foi justa, ou a nossa vitória em 2016 foi injusta.
Eu opto pela primeira.
Não fui festejar
para a rua porque tudo o que era significativo para mim aconteceu ali, no Júlio dos Caracóis. Ali e no Stade de France. Terminava a missão Euro
2016 e nós estávamos felizes. Eramos finalmente campeões. Apenas de futebol,
mas eramos campeões!
Caparide, 11 de
Fevereiro de 2017
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