No fim-de-semana fui mandado parar pela polícia em duas operações stop em
dois dias distintos.
Não me recordo de algo assim alguma vez me ter acontecido (que me lembre,
até sexta-feira passada apenas tinha sido mandado parar quatro vezes, três
delas em operações stop). Não sou propriamente um tipo rebelde no que ao
cumprimento da lei concerne mas não deixo de sentir um aperto no estômago, a
pulsação a acelerar e o calor invadir-me o rosto sempre que vejo os senhores e
as senhoras de farda com todo o aparato que os envolve, sejam ao carros
assinalados, as luzes, os cães, as armas ou o que quer que seja que eu associe
à autoridade. Mal os vejo, sinto sempre que me vão apanhar por alguma coisa,
como se tivesse feito asneira sem o saber. Mas a minha folha de registo está
limpa as prevaricações de que me podem acusar não passam de delitos menores:
não pedir factura, atravessar a rua fora da passadeira, passar um semáforo a
queimar o laranja ou matar uma velha tem sido o pior em que já incorri.
Contudo, ver um polícia põe-me nervoso. A proximidade da autoridade só me transmite
a sensação de segurança se calha eu estar no meio de um bairro manhoso, o que
não acontece muitas vezes, e vejo um carro-patrulha ou uma parelha de homens com
a indumentária bem aprumada a fazer a ronda.
Na sexta-feira à noite vinha de uma jantarada no Estoril pela uma e meia da
manhã.
Bebi vinho e champanhe, tudo do bom e por isso mesmo não me fiz esquisito:
até nem era eu quem pagava… o vinho era realmente bom e por isso fui bebendo,
antes mesmo de começarem a vir as entradas. Assim que começam a chegar os
aperitivos, sinto no paladar que acompanham bem o vinho que eu já levo de
avanço: normalmente o vinho acompanha a comida mas dava-se o caso de, neste jantar,
a situação inverter o que era para mim a natural função que comida e bebida
cumpriam na ordem alimentar. Acalmo a sede à espera do prato principal mas os
empregados continuavam a trazer os pastelinhos, conezinhos e outras miniaturas,
todas terminadas em “inhos”… até que peço mais um copo: o vinho era bom (não
sei se já disse mas nunca é demais reforçar… é assim como dizer à mulher de
quem se gosta que se gosta mesmo). Uma sopinha, um pratinho… e às tantas dou
por mim e os pratos principais haviam passado despercebidos pelo meio de tanto
requinte e miniatura… bem sei que a sala estava a meia-luz e que chovia a
cântaros lá fora (a vista para o mar deveria ser linda não fosse o jantar ser à
noite), mas não contava que a comida que me deveria acalmar a tontura passasse
entre os pingos da chuva, camuflada entre as sombras, os sabores e os sons que
animavam a festa.
Que se lixe, pensei, Estou perto de casa! Por uma
vez na vida tenho um evento perto de casa! Não há-de vir mal ao mundo. A conversa
prosseguiu e veio o bolo acompanhado do tradicional champanhe cuja combinação
resulta sempre tão mal mas que eu raramente recuso, como se o hábito fosse mais
forte do que a vontade. Como com o café após a refeição.
Era docinho o champanhe (e o bolo também!) para mal dos meus pecados. Lá
bebi um copo e meio para acompanhar as sobras da conversa que se seguiu…
Saí meio ensonado mas satisfeito: a casa era logo ali ao virar de uns
quatro ou cinco quilómetros. Nem quinhentos metros haviam passado quando, ao
entrar na rotunda vejo o espalhafato azul e vermelho (não sei se o que me deixa
nervoso são as cores, lembram-me os Estados Unidos e uma certa cultura de
violência… ou então a guerra futebolística norte-sul, o que vai dar ao mesmo).
Estou fodido!
Mandam-me encostar.
Estou ainda mais fodido!
De imediato começo a fazer contas de cabeça, não para atestar das minha
capacidade de raciocínio ou qualquer outra faculdade mental, mas para
contabilizar o número de copos que havia ingerido: contei cinco copos de vinho
branco e um copo e meio de champanhe (não fiz misturas!).
Estou fodido!
Abro o vidro o coloco o ar mais angelical de que sou capaz: no meu caso não
é difícil mas mesmo assim, reforço a imagem de santinho. O sr. agente, um homem
de meia-idade, simpático e amigável pede-me a carta. Dou-lha ao mesmo tempo que
pergunto se quer que saia da corro. Com um gesto diz-me que não vale a pena. Dá
a volta à viatura e ilumina o dístico do seguro (é válido desde vinte e três de
Fevereiro mas só me tinha lembrado de o colocar na semana anterior…).
Pergunta-me onde resido e eu digo a verdade, Caparide, pensando que era
desta que me iam apanhar: a morada na casa de condução é a da casa do meu pai
onde não resido há mais de dez anos. Devolve-me a carta sem mais demora.
E então, eis o momento da verdade:
- O sr. esteve a beber?
- Bebi um “bocadinho”.
- Um bocadinho? – pausa – Mas não bebeu uma garrafa de vinho, pois não?
- Não! Claro que não! Uma garrafa não!
- Bebeu o quê? Um copo ou dois?
- Sim… por volta disso. – e logo atalho caminho – Estive num jantar em casa
de uns amigos e vou “ali” até casa.
- E mora longe?
- Em Caparide. – não sei se se havia esquecido ou se a pergunta era para me
apanhar – É já ali.
- Ok, muito obrigado. Pode seguir viagem. Mas vai mesmo para casa, certo?
- Sim, já estou um bocado cansado.
- Então faça boa viagem até casa sr. condutor.
Menti à autoridade! Disse que não tinha bebido para me safar de um controlo
e o “porreirismo” do sr. agente e a minha cara de santo fizeram o resto… não é
que sinta propriamente remorsos pois eu não estava embriagado, estava só um
pouco ensonado mas de qualquer forma, mentir à autoridade deve ser um crime
chato1.
No sábado à noite chovia mais ainda.
Não era um diluvio mas deu para apanhar uma valente molha quando fui para o
carro, deviam ser umas três e meia da manhã, vindo da noite de salsa onde fingi
que sabia alguma coisa mas só confirmei que (ainda) não danço um caralho. Na
realidade eram duas e meia, a hora é que avançou nessa noite e como duas
noitadas seguidas já não são para a minha idade, passei a noite a beber
coca-colas! A chuva obrigava-me a uma atenção que eu não queria chamar mas as
vias por onde andei a isso obrigavam. Entrei na marginal e pensei que ia
finalmente deixar que o hábito me conduzisse até casa mas assim que vejo os
pinos antes da curva do Mónaco pensei logo numa operação stop.
Mas desta vez estava contente! Não tinha bebido uma gota de álcool e até
queria soprar no balão.
Encosto e mal abro o vidro vejo uma sra. agente cuja cara me soa familiar…
- Olá António!
- Olá! – respondo eu reconhecendo a voz e a cara ao mesmo tempo.
A L. é monitora no ginásio onde ando e era ela quem estava de serviço no
dia em que lá entrei. Eu já sabia que ela era polícia e que poderia andar por
ali mas estava longe de imaginar ser parado uma segunda vez em dias seguidos
quanto mais encontrá-la.
De imediato se interpõe um agente sisudo que me fala com jeitos de militar
forçado, como se buscasse uma guerra que nunca mais vinha de modo a poder pôr
em prática todo o ar de mauzão que a sua voz tentava simular:
- Boa noite sr: os seus documentos por favor. – entrego-lhe o cartão de
cidadão e a carta de condução – O certificado de matrícula por favor! – e
afasta-se com a “minha amiga” dando a volta ao carro. Não faço ideia o que raio
seja o “certificado de matrícula” mas sei que tenho tudo em ordem por isso vou
tirando a tralha: livrete, comprovativo de IUC e papel verde do seguro.
- É o livrete, certo? – pergunto assim que se aproximam da janela. Ele
acena. Entrego-lhe o papel que me é devolvido de imediato com os restantes
documentos.
- Sabe quando tem de ir à inspecção?
- Em Agosto. – respondo com ar triunfante.
- E o dia? – com esta é que me apanhou – Sabe que agora é o dia da
matricula que estabelece a data limite?
- Não sabia.
- É dia treze de Agosto. Fica com a informação para poder actuar em
conformidade.
Agradeci a informação, despedi-me da L. e segui viagem com grande pena de
não me terem feito o teste da alcoolémia. Ainda pensei em pedir mas o ar
mal-encarado do sr. agente, apesar da utilidade da informação que me deu,
dissuadiu-me.
Não sei se passarei a encarar a autoridade com menos receio mas neste duplo
encontro sinto que tive sorte, um fez que não viu uma possível multa que me ia
aliviar a carteira e pesar na consciência (bem mais do que a mentira); o outro
nem referência fez ao teste, não sei se por eu conhecer a colega dele se devido
à minha cara de santo.
Seja como for, vou jogar no Euromilhões porque me parece um sinal muito
claro que, depois de ser mandado parar duas vezes seguidas pela polícia e nada
me ter sido levado, a probabilidade de acertar na chave milionária tornou-se,
pelo menos psicologicamente, muito mais provável.
1Tudo
o que escrevi neste texto é mentira, sobretudo a parte em que digo que menti ao
polícia. Mas se tudo é falso, esta nota também o é o que transforma o conjunto
crónica-nota num paradoxo bem lixado de deslindar.
Lisboa, 26 de Março de 2018
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