Um livro que me agarra no aconchego do lar quando leio ao som da chuva; o
lar que se dissolve numa esplanada, as páginas do livro iluminadas por um sol
que aquece sem queimar, que alegra sem cegar; o livro terminado que me faz mais
rico, mais completo, ainda que só eu o reconheça; tal como numa sala de cinema
vazia me sinto mais próximo… a sala está vazia e eu estou lá… o filme é belo,
tão cheio a projectar-se na sala vazia, e por duas horas esvazio-me de tudo
menos do filme que me enche; como me enche um golo do Benfica, de uma alegria
que só nós sabemos sentir, adeptos irracionais vibrando entre a lógica e a
paixão na mais bela manifestação primária dos nossos dias; primária como o sexo,
a explosão animalesca, vivido dentro de portas… é bom; como é bom o amor e a
sedução, amizade colorida, galantear quem elegemos, quem nos elege; uma mulher bonita
que se atravessa, na rua, na farmácia, no ginásio, cruzamos os perfumes num
cheirinho de intimidade; e por vezes tocamos, ao de leve, como quem não sente,
sentindo o acaso, intencional, e o toque acaricia, da carícia ao abraço,
coração-respiração no compasso da emoção, e finalmente… o beijo… arrepio…
saboroso… com fervor, amor, fascinação; acordar sem despertar com o brilho poeirento,
caloroso, da aurora atravessando a persiana mal fechada, sonhar ou não sonhar,
voltar à vida levemente, docemente, reentrar em cada dia, recomeçar; antes de o
amor acordar ao nosso lado, vê-la dormir, respiração de princesa, pureza; um pequeno-almoço,
um brunch, um almoço ou um jantar; uma
pita ao frio das quatro da madrugada
junto à roulotte;
iguarias; petiscos, queijo, pão e um copo de vinho, Douro ou Alentejo... e
miniaturas, muitas para que pareçam grandes, grandes sobremesas no combate à
ditadura do saudável; porquê? porque sabe bem; sabe bem acreditar; em quê? não
importa desde que se acredite; acredito, confio, sei, lado a lado com a dúvida
do tamanho do universo; é óptimo duvidar, e mágico acreditar… que sei dançar a
vida; e a dança é sedução, para quem não dança; é técnica, para quem aprende; é
liberdade, para quem quer ir; ir ao ginásio esgotar o corpo que se pensava
esgotado, e como é bom cansar o pensamento, vergá-lo ao físico; um duche quente
a correr eternamente num dia frio; um duche frio a correr eternamente num dia
quente; antes do duche a corrida, junto ao mar ao fim da tarde; andar pela
serra, caminhar de paisagem em paisagem, subidas e descidas, bosques e lagoas;
desfazer tudo na praia, um mergulho congelado, transpirar sem manchar, mijar
sem baixar, biquínis e tudo o mais; o chilrear das flores na Primavera e os
cafés de fim de tarde entrando pelas noites de Verão; as férias sem horários;
fazer porque sim, porque apetece, porque… sim; mais longe de avião; levantar
voo, excitação pelo destino, aprazível regresso, como é bom levantar… e também
aterrar; caminhar depois de poisar, depois de voar, levitar de volta à vida;
que vida? que vida vivemos? a excepção ou a regra? eterno paradoxo fazer da
excepção a regra; fugir à regra, voar, ouvir; um concerto na penumbra de um
auditório; piano, Rachmaninoff, de olhos fechados a música é tão pura, uma
viagem… longe ou perto, exterior ou interior… sempre viagem, pura, de olhos
fechados; abri-los para um quadro, Guernica
imponente, que assombro!; olhos que se fecham com uma gargalhada; uma piada,
porca, racista, sexista, xenófoba… tão melhor quanto mais proibida; o riso, o
sorriso, o olhar… as expressões que rejuvenescem ao conduzir estrada fora, com
música, vento, rumo ao sul; sem perder o norte; perdendo-nos no mapa, e
reencontrar… as referências: a Família, os Amigos, as Amantes, o riso inocente
de uma criança, toda a companhia da longa e única travessia, essa vida tão
cheia… e tão vazia de tudo o que a ultrapassa; ultrapassar as barreiras, os
limites, o infinito… Fernanda Ribeiro, Carlos Lopes ou Rosa Mota e as medalhas
de ouro que me fazem pele de galinha num resumo televisivo, o hino nacional e o
golo do Éder, e o do Eusébio contra o Brasil, e o do Ronaldo contra a Juventus?
olhar para a infância, encontrar a felicidade que nunca existiu; os piqueniques
no pinhal, um banho no rio, um filme até tarde, brincar na rua, coleccionar
cromos; toda a vida a coleccionar cromos; construindo, do sentimento ao
pensamento, pela linguagem, sob a escrita, que prende e liberta, vicia e
expulsa o que temos cá dentro, sem dar descanso senão quando termina a obra; e
é puro prazer; ainda que só eu o reconheça; e por que vale a pena a vida? por
tudo isto, que é pouco e muito, e por muito mais ou muito menos, é o que temos,
para nos comover, ver, viver, e agradecer.
Caparide e Lisboa, 16 e 17 de Abril de 2018
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