Irmão de Gelo

Sobre o que damos de nós:

“(…) em que ponto o verbo dar se aproxima do verbo ser, ou seja, o que se “dá” de “si próprio”? Porque uma relação implica sempre esta troca entre um e outro, este ir e vir que os objectos apenas materializam.”

A coragem de Alicia Kopf em levar por diante um projecto que se distingue dos demais revela uma ousadia e uma sinceridade que eu invejo. Irmão de Gelo é uma obra original, bem escrita, intimista e realista na qual encontro pontos onde me revejo. Os períodos em que nos sentimos perdidos variam de frequência e duração consoante o que somos e as vidas que levamos, mas é raro existir quem nunca se perdeu. É essa exposição à fragilidade e a forma de a encarar que Alicia Kopf descreve de forma sublime.
Aludindo a uma estrutura em jeito de diário, o texto vai alternando a descrição da vida da autora e daqueles com quem ela se cruza, com o fascínio pelos pólos (os pólos físicos, o Norte e o Sul) e a sua exploração, metáfora para a descoberta em busca da qual partimos, tentando quebrar o gelo que nos prende dentro de nós próprios e ao mesmo tempo nos impede de chegar ao interior que queremos encontrar.

Os desejos congelados de quando não se tem dinheiro ou não se é correspondido são diferentes daqueles que congelamos porque renunciamos a eles. Estes últimos têm o brilho de uma heroicidade estoica. Porém, se renunciamos aos desejos é porque temos medo e passámos a vida cegos, sem nada sentirmos ou vermos… Por outro lado, se lhes obedecermos sempre podemos acabar perdidos. O que converte Ulisses em herói é que renuncia e não renuncia. É prudente sem se privar do desejo ao permitir-se ouvir o canto das sereias.

Sobre o lugar onde queremos chegar:

Aquilo que para ela representam os pólos representa para mim a montanha, mas quando dei corpo a esta comparação durante a leitura, aparece-me um capítulo onde a autora relaciona o gelo com a montanha, por oposição ao mar “Para Simmel, o mar age por empatia à vida, e os Alpes por abstracção.”. E com isso estragou-me o efeito…
Tenho os Andes e os Himalaias como as viagens de sonho: montanha e gelo, refúgio do mundo, silêncio de vento, deserto em altitude, realidade congelada pela ousadia. Poderia simular um ponto em comum, irmanar-me com a autora, mi hermana de hielo, de la montaña, de la busca por los lugares donde nos perdimos para volver renacidos… seria forçado mas a arte, e em particular a escrita, além da profundidade e da originalidade, tem nas associações que é capaz de estabelecer onde outros nada vêm aquilo que a distingue das demais formas de interpretação do real, seja na ficção, na crónica, no ensaio ou na escrita documental. Porque não é de causa-efeito que falamos mas de relações mais sentidas do que dissecadas, mais casuais do que pensadas. Não cairei na fórmula fácil ao estabelecer relações quase-forjadas, forçando uma identificação que, mais do que real, existe no mundo do subjectivo, do relativo, do imaginado? Talvez… mas se assim for, tudo é forjado.

“Uma parte de mim gostava de estar em casa, de ter uma vida familiar. A outra tem vontade de aventuras. Não encontrei ninguém capaz de me seguir nas duas coisas.”

Sobre os heróis:

Ao ler uma passagem desta obra tão singular, recordo as tardes da minha adolescência onde assistia ao tour, ao giro e à vuelta. Numa vuelta em particular, vejo uma etapa onde um herói solitário calcorreia dezenas de quilómetros, deixando o pelotão a extensos minutos de distância. Busca a vitória do dia e com isso, a sua parcela de glória. Na perseguição vem o camisola amarela, Laurent Jalabert, com o pelotão no seu encalço encabeçado por Abraham Olano creio. Jalabert vai alcançar o fugitivo manchando de injustiça um esforço solitário perante o trabalho de entreajuda com que os perseguidores se foram revezando. E no momento em que o hipotético vencedor é ultrapassado e o desânimo ameaça relegar para o esquecimento uma etapa de esforço sobre-humano, algo de anormal acontece no pequeno ecrã: Jalabert desacelera e chama por quem teve o mérito de acreditar quase até ao fim. Ganha ânimo o desconhecido e juntos cortam a meta com a vitória a caber a quem mais fez por merecê-la. Olano vinha desenfreado e quase estragava o gesto.
Não sei quem ganhou a etapa, mas sei que o herói do dia foi Laurent Jalabert. A atitude valeu bem mais do que a camisola amarela que acabaria sua no final da prova. Provavelmente, se precisasse de ganhar a etapa a história teria de ser reescrita, mas tal não aconteceu e foi assim que teve de ser. É no desporto que a simbologia dos actos heroicos é mais vistosa mas é no quotidiano que eles produzem mais efeitos, mais duradouros, mais significativos. Porque a vida real é cá fora, no dia-a-dia, e desses heróis, congelados no frio desinteresse da realidade, pouco fazemos por saber.

O alpinista Ferran Latorre abdica de chegar ao cume do Evereste para resgatar um xerpa doente.

Foi esta a frase que trouxe até mim a vuelta de 95. Uma rápida pesquisa na internet preenche os espaços que a memória deixou em branco e nomeia todos os heróis: o fugitivo solitário chamava-se Bert Dietz, andou fugido por mais de 230 kms e o final da etapa era “só” no alto da Sierra Nevada! O vídeo do final da etapa está no youtube e ao revê-lo, sinto quão belas podem ser as acções simbólicas.

Sobre a família:

Quantas famílias se sustentam nos fundamentos do que não é dito? E em quantas o rei janta nu todos os dias à mesa? Porque, no dia em que se descobrir o segredo, já não vamos poder olhar para a cara uns dos outros.

Em O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde escreveu que “As crianças começam por amar os pais enquanto pequenas. Ao crescerem tendem a julgá-los. Por vezes perdoam-nos.”.
As fragilidades inerentes ao papel da família são abordadas e talvez se constituam mesmo como fio condutor deste texto. No núcleo familiar em que nos refugiamos, perante a ausência de referências gerais pelas quais as famílias possam orientar os seus comportamentos, resta pouco a que nos possamos agarrar quando elas (as famílias) falham. E quase nunca o fazem em absoluto mas sim em face da pessoa que somos: na presença de um “insucesso educacional”, fosse o filho um ser diferente e o mesmo comportamento familiar, a mesma educação, a mesma convivência poderiam converter-se num sucesso. A linha é ténue e de difícil identificação sendo possível observá-la apenas pelo comportamento de quem sofreu as consequências da disfuncionalidade transmitida (pequena aos olhos do mundo, gigante na intimidade).
Alguém ser capaz de se expor desta forma e conseguir descrevê-lo com a clareza com que o fez (também) faz deste texto um triste e belo tratado – tantas vezes as coisas tristes têm tanto de belo – de psicanálise.

Sobre o amor:

“ (…) deve sentir-se tão desorientado como eu sempre que acabo uma relação sentimental. Porque, tal como com o amor, o seu centro não está totalmente dentro de si mas uma parte está fora, no outro.

(…) Porque me davas todos aqueles presentes? Agora arrependo-me de não ter feito o mesmo: oferecer-te roupa, sapatos, perfume. Tudo aquilo que pudesse prolongar a minha presença em ti.
Porque os objectos duram mais do que os sentimentos.

Sobre o que fica de uma obra:

Bull’s eye!

Chegado ao final, acontece o mesmo de sempre: o confronto entre a expectativa que fui criando, as sensações que me acometeram ao longo da leitura e o desfecho, o que fica após a última palavra. Tantas vezes o remate final redunda em desilusão que não deixa de se revestir de um carácter altamente provisório opinar sobre um livro antes de o terminar. E mesmo após fechar a história, é necessário tempo para deixar sair o entusiasmo momentâneo e perceber se o que ficou da leitura é resíduo ou substância.
Ainda não passou esse tempo: terminei hoje de ler Irmão de Gelo.
História sem história; o peso e a leveza; anjos e demónios; simples e complexo. Tudo tem um contrapeso e não estou certo se, para se ser um verdadeiro criador, não necessitaremos de ter fantasmas para derrotar, pesos para aliviar, obscuridade para iluminar, incompreensões para descomplicar… não tratará a arte de descodificar através do belo, do fascinante, do grotesco ou visceral aquilo que, estando acessível, não queremos aceder pela plataforma comum onde convivemos?
Isso foi conseguido.

Polir é uma maneira de desgastar.
(…)
Pergunto-me se, depois de todos estes anos de estudo, trabalho e relações amorosas mais ou menos falhadas, me poli ou me desgastei?

Assim, mais do que sentenciar se o final me desiludiu, se o livro é bom ou se está bem construído, consigo dizer que não me deixou indiferente. E sei que os pontos de identificação que tão facilmente estabeleço com uma obra que não me deixa indiferente se vão esbater. Só então saberei se Irmão de Gelo será substância ou resíduo na minha vida. Até lá, a sua matéria vai alternando: nuns momentos é substancial; noutros residual.
 
A única coisa que me devolve a força é escrever: construir sentido. Será que me meti em todas estas confusões para depois escrever sobre elas? Acreditei numa relação incrível para ver até onde me levava narrativamente? Talvez a escrita me reclamasse e eu volatilizei tudo sem ter consciência quando cheguei ao limite? Escrever é o veneno e a cura. Ou, como dizia Clarice Lispector, escrever é uma maldição que salva.

Lisboa e Caparide, 13 a 15 de Março de 2018

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