Marraquexe (parte 2/2)

Dia III

Hoje, pela primeira vez escrevo o relato da viagem de uma só vez, à noite, já que o dia foi diferente não tendo libertado parte da tarde para o já habitual “repouso na hora do calor”. E hoje foi o dia mais quente até agora…
O Lassan, um guia, levou-nos ao vale do rio Ourika, nos Montes Atlas o que constituiu uma aventura daquelas…
Percorrer as ruas de Marraquexe transporta-nos para uma época reconstruida pelas aulas de História quando as rotas e entrepostos comerciais da Idade Média e do período dos Descobrimentos caracterizavam o mapa de então: o comércio que pudemos observar para lá das janelas da carrinha Hyundai estendia-se para fora dos limites da Medina. Por mais de trinta minutos prolongou-se também a cor tijolada da cidade comprovando a sua real dimensão.
Com o dia enevoado, o primeiro desde que chegámos, percorremos uma paisagem semi-desértica (“árida” seria um temo mais exacto) com o Atlas ao fundo, sempre difuso pelas nuvens baixas que pesavam sobre nós. Embora pouco do que fui vendo se parecesse com a ideia do “deserto” que eu havia metido na cabeça quando vi esta terra de cima, do avião, nenhum detalhe por onde passei me desiludiu um bocadinho que fosse.
O Lassan fez questão de referir que era berbere e não árabe (algo que gostam de deixar bem vincado) e falou-nos um pouco das tradições do seu povo quando parámos para tirar umas fotografias a uma aldeia berbere (pejada de antenas parabólicas!). Como noutras culturas, antigamente era o pai quem escolhia a noiva para o filho ao qual só era permitido ver a prometida ao longe antes do casamento. Se a menina agradasse, o rapaz faria um chá mais açucarado; se a jovem não lhe “caísse no goto”, levava com chá amargo. Na tradição berbere as mulheres têm entre doze a catorze filhos uma vez que os filhos são a “maior fortuna que os pais podem ter”. Se “fortuna” significar “sorte”, até posso compreender, caso contrário, é mais despesa do que fortuna… Durante a paragem apareceram logo dois tipos de mota que encostaram para nos vender umas merdas tão ranhosas que nem dado eu quereria aquilo… até no meio do “nada” estes tipos sabem onde nós estamos para fazer negócio: está-lhes no sangue!
No vale de Ourika a terra é argilosa, daí a cor e o material das casas. As vendas de rua levam-me a refrear a admiração descrita acima: com tanta gente a vender, surpreendente seria não aparecer ninguém a tentar impingir uma inutilidade qualquer. Primeiro estranha-se, depois…
É para mim cada vez mais fácil reprogramar a aceitação do que vou experienciando quando a realidade não condiz com as expectativas que havia criado: a paisagem da montanha é bem diferente do que eu idealizara mas tem uma beleza tão própria que não me foi difícil ir assimilando aos poucos.
Cada viagem é uma descoberta de nós próprios. Com os lugares que visitamos, as culturas que conhecemos e as experiências a que nos propomos, descobrimo-nos. Talvez eu tenha viajado pouco até hoje e só agora esteja a descobrir que há coisas que eu não equacionaria viver e que, tomado o risco (para mim ainda é um risco), sai até “melhor do que a encomenda”. Marraquexe (e Marrocos) está aí para o comprovar.
Visitámos uma casa berbere, impressionante para mim pela pobreza e esterqueira presentes (deram-nos a comer um bocado de pão que as moscas e as abelhas haviam provado antes… comi e passadas doze horas ainda não caguei fininho. O Lassan tinha dito que um dia havíamos de ir passar uma ou duas noites a casa da família dele para vermos como é o “modo de vida berbere”. É o “vais”… quem não vai sei eu quem é!
Mais tarde parámos numa cooperativa de óleo de argão (de que eu, na minha ignorância, nunca tinha ouvido falar): o processo de extrair o óleo para os diferentes fins é engraçada embora nos tivesse sido apresentado com um profissionalismo típico para turista ver. De resto, além de ser caro como a merda, aquilo parece-me daqueles produtos que dão para tudo e mais um par de botas (se o aloé-vera entretanto passou de moda, este parece ser o “senhor que se segue”): serve para comer, para o cabelo, para a psoríase, para a cara… e se puxarmos pela imaginação, também deve ajudar na digestão,  no reumatismo ou na performance sexual. Para informação, um boiãozinho de “Nutela de Marrocos” (que é bem boa) custa vinte e cinco euros!
À beira do rio que corre ao longo de um vale bem cavado e por isso mesmo, bonito e impressionante, sofás, mesas e cadeiras coloridas junto ou mesmo dentro de água compõem os restaurantes que antecedem o caminho para a cascata. Paramos num deles para um almoço bem no coração do vale do Ourika. Comi tomate (Uhhh, vegetais crus… mais um papão desmascarado: ainda não caguei fininho…)
Depois veio o passeio (julgava eu…).
Um outro guia, o Nordi, levou-nos por um caminho no qual começamos a subir “moderadamente”: uma escadita aqui, uma pedrita ali, uma pontesita da treta, umas bancas para vender de tudo (até aqui…), sempre acompanhados por magotes de gente a subir e a descer. O tempo cada vez mais pesado ajudava à festa e à medida que fomos avançando, o terreno foi inclinando ao mesmo tempo que se tornava escorregadio. Os meus ténis devem ter ficado todos fodidos mas a trepadeira, apesar de não poder estar mais longe do que eu antecipara, foi fantástica: dos seis, chegámos quatro à “terra prometida”, a cascata revigorante com a gélida água pelo joelho e o fundo forrado de calhaus a tentarem sem sucesso boicotar o duche: o Filipe, o Vítor e eu lá nos metemos debaixo da cascata (a Patrícia só não o fez pelo ambiente não ser apropriado para bikinis). As paisagens que vimos eram deslumbrantes tal como as marroquinas que vendiam ao longo do trajecto (até agora, foi este o sitio onde encontrámos as raparigas mais bonitas).
A descida foi outro filme e eu só rezava ao Deus em que voltei a acreditar naqueles trinta minutos para não me esbardalhar ao comprido… olhava para os marroquinos e pareciam macacos a saltitar entre os calhaus, ora com putos ao colo, às cavalitas, pela mão… enfim, uma aventura que vai directamente para o álbum de memórias de Marraquexe (embora a acção tenha decorrido a setenta quilómetros da cidade).
O resto do dia foi para recuperar: duas garrafas de vinho no Riad entre outros tantos mergulhos e o jantar no terraço do Taj’in Darna (hoje comi uma Pastilla = Pastel de frango polvilhado com açúcar e canela!)
Amanhã: hammam: mais uma experiência para recordar (ou talvez não).


Dia IV

No caminho para o hammam o François conduziu-nos pelas ruelas estreitas e obscuras da Medina num dia que se adivinhava de grande calor. Estamos de novo no meio de uma cena de filme, percorrendo um trajecto labiríntico até uma portinhola que, tal como o Riad onde estamos alojados, tem um aspecto decrépito por fora mas por dentro é até bastante aceitável. Após uma boa recepção (que no meu preconceito é sinónimo de “ocidental”), lá escolhemos um pacote marroquino para viver a experiência… Vamos até um balneário onde o roupão que me calha está carregado de óleo (bingo!) e depois de o trocar, vamos os quatro (o Filipe, o Vitor, a Amélia e eu) para a sala do hammam onde duas marroquinas “todo-o-terreno”, muito simpáticas mas com um cheirinho que nem todos os óleos e sabão com que nos besuntaram nem a água com que continuamente lavavam a divisão foi capaz de anular! De resto, fomos lavadinhos, depois levámos uma esfrega com uma lixa número 8 daquelas que o meu pai comprava na drogaria Cajoar no Monte Estoril quando eu era puto e a bricolage era o passatempo de fim de semana dos homens de família antes do IKEA ter vindo estragar a vida de uns e facilitar a de outros. Levámos literalmente uma esfrega bem lixada (a língua portuguesa é tão rica!) mas que soube pela vida. Depois veio a massagem: corpo inteiro, miúdas giras e óleo d’argão! O que mais pode um tipo pedir nesta vida? Sem ironia, foi a melhor massagem que já fiz (não fiz foi muitas). Parte chata (que também acontece em quase todos os locais de massagens em Portugal à excepção de um): um tipo sai de lá todo cagado de óleo. É que nem um banhinho para soltar aquela oleosidade que vem agarrada ao cabelo, à roupa, à pele, e ainda por cima no dia mais quente do ano, insuportável até para respirar, em Marraquexe! Transpiramos mais porque temos os poros abertos… é bom para libertar as impurezas… Pois… eu paguei pela experiência que foi fantástica, ficar com “óleos-aloé” era dispensável: só ansiava por um banho para libertar o corpo da libertação das impurezas.
Como estávamos a derreter com o calor, resolvemos ir até ao Suk fazer umas compras: regateámos os preços de umas camisolas de futebol que o Filipe quis levar para os filhos e os tipos, no meio daquele labirinto, sabiam exactamente onde se encontravam a Amélia e o Vitor conduzindo-nos, a mim e ao Filipe, até eles. Mais tarde soube que têm câmaras… Big Brother’s Watching You.
Almoçámos refrescados na praça, no Café Aqua, comidinha italiana para lembrar o nosso querido Portugal.
Só ontem à noite é que percebi que aqui os peões se deslocam junto à parede pela direita (no sentido do tráfego portanto). Apesar do Abdel nos ter feito o aviso quando chegámos, pensei que o “junto à parede” fosse mais importante do que o “pela direita”. Daí a nossa experiência Twilight Zone no caminho para o Riad ao fim da primeira noite: vínhamos pela esquerda… e ainda bem!
A pressão de água é coisa que rareia por estes lados o que pode ser desagradável se estivermos a falar de um autoclismo… um jarro decorativo de latão que durante três dias teve como único propósito enfeitar o quarto viu hoje alargar-se o seu campo de acção para outros fins não tão estáticos mas quiçá mais nobres…
As surpresas que vão compondo estas férias, sejam elas a respeito do choque entre realidade e expectativa, da convivência com novos parceiros de férias ou simplesmente de experimentar coisas novas (ainda não experimentei haxixe) trazem-me uma imagem de Marrocos que, ainda que possa ser parcelar, parcial e particular, me faz ganhar um respeito adicional por este país: o Rei proibiu os haréns, as pessoas são educadas, o país é seguro, a comida não é muito agressiva e, às quatro da tarde do quarto dia com quarenta e seis graus lá fora, ainda não caguei fininho!

O aperitivo que o François ofereceu no terraço acabou numa verdadeira aula de empreendedorismo: o homem contou-nos a história da sua vinda para Marraquexe, desde a morte do pai e a venda da casa de família que lhe disponibilizaram uma verba à qual juntou o dinheiro resultante da venda dos bens que detinha em Paris até ao estudo que fez do lugar para implementar o Riad, os critérios que utilizou, os Riads que visitou… enfim, trabalho de um verdadeiro profissional, sozinho, determinado e corajoso. Sente-se realizado.
O calor poeirento (embora não pegajoso como em Lisboa) prolongou-se pela noite em que decidimos fazer um jantar trajados à marroquino. Não me apeteceu comprar estas vestes e o Vitor “emprestou-me” um fato que havia comprado para eu não me sentir deslocado, algo que não aconteceria mas ainda assim, valeu a atenção. E a fatiota até nem era feia.
O nosso último jantar em Marraquexe foi no Café Glacier, o mais antigo restaurante da Jemaa El Fna, um espaço bonito, capaz de proporcionar mais uma vista panorâmica sobre a praça, e onde a sorte com as opções do menu não quis nada comigo: uma Pastilla sem sabor e um crepe de chocolate que nem um Tiranossauro Rex conseguiria dar conta. Ao descer a escada de volta à praça, uma barata atravessou-se no meu caminho.
Acabámos a noite no Kosybar para uma última bebida alcoólica (as outras não posso dizer onde foram tomadas… ou se calhar já disse) e no regresso ao Riad subimos ao terraço para desfrutar de uma última noite de verão. Destas noites em que apetece estar na rua até tarde a borregar.


Dia V

O último dia em Marraquexe foi uma coisa sem graça, como o são quase todos os dias de férias em que partimos a meio do dia: arrumar as malas, comprar os últimos “recuerdos” (últimos e primeiros para mim), termos que deixar tudo pronto às onze e meia da manhã o que inviabilizou um último mergulho no tanque do terraço do Riad,… enfim, não fizemos turismo a sério mas também não gastámos o dia a contar os minutos. Um dia onde não se fode nem se sai de cima para empregar um bonito provérbio da língua portuguesa.
O resto do dia não teve grande história: um almoço marroquino para despedida, partida para o aeroporto, desfazermo-nos dos últimos dirhams (a minha veia matemática conseguiu optimizar o gasto ao comprar duas caixas de bolachas de modo a ficar com 1 dirham (=9 cts€) no bolso!), e eu começar com tonturas.
Apesar de ter sido uma viagem que alterou substancialmente a ideia que levava à partida, gostei muito de Marraquexe e dos seus habitantes (bem mais simpáticos do que eu pensava, embora um bocadinho chatos quando se tratava de negociatas), do ambiente algo exótico da cidade e muito de outro tempo (não grandes marcas do ocidente, pelo menos nos locais por onde andámos). De forma alguma seria um país que eu escolheria para viver tais as diferenças em termos de higiene, acesso à cultura, clima e sobretudo, tranquilidade, face ao lugar onde vivo. Contudo, é um sítio onde vale bem a pena demorarmo-nos uns dias para uma visita.
Do avião pude comprovar a dimensão gigante desta cidade. E imaginar que andei ali pelo meio…
Expressões portuguesas ouvidas ao longo destes quatro dias (por esta ordem):
- Cristiano Ronaldo
- Obrigado
- Batatas Fritas
- Pachacha

O dia estava quente p’ra caralho e só cheguei a casa pelas oito e meia depois de aterrar em Lisboa às seis e quinze: viajar de avião pode ser muito prático mas a junção da antecedência, bagagem e segurança torna-a numa forma de nos deslocarmos não só cansativa como também desconfortável (quase seis horas entre chegar ao aeroporto e entrar em casa para um voo de uma hora e quinze).
A noite foi dura fazendo-se finalmente sentir o “efeito-Marrocos” no meu aparelho digestivo. Mas em Marrocos nunca, em momento algum, eu cheguei a cagar fininho!

Marraquexe e Caparide, 30 de Julho a 5 de Agosto de 2018

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