Epílogo para a Amélia

Quando a Amélia morreu eu não estava presente.
Não estava presente naquele momento como não havia estado presente na sua vida ia para uns dois anos… tínhamo-nos afastado.
Conheci-a no único ano em que dei aulas, na Escola Secundária Luísa de Gusmão na Penha de França. Gostei tanto do ensino que no ano seguinte, tendo sido colocado na Marquesa d’Alorna (coincidentemente a escola onde a Amélia viria a leccionar nos últimos anos de vida) após ter concorrido mais por um reflexo condicionado motivado pela falta de alternativas do que por uma convicção, vocação ou vontade genuínas, nem me dignei a apresentar-me ao serviço.
Quando nos conhecemos, em Setembro de 2004, a Amélia ainda não tinha quarenta anos. Orientava o estágio de Inglês/Português enquanto eu iniciava o meu estágio em Matemática juntamente com o meu colega Emanuel.
Foi para mim um ano difícil, quer pessoal quer profissionalmente e de todas as pessoas que conheci nesse ano, a Amélia foi das que mais contribuiu para o aligeirar.
Aos vinte e três anos, via-me como um puto e a ela como adulta (agora que estou quase com a idade que ela tinha na altura, continuo a ver-me como um puto). Gostávamos de livros e de filmes, de quizzes, jantares de amigos e anedotas picantes. Distávamos na visão que tínhamos do mundo: ela era de Esquerda e eu de Direita; ela fascinava-se com o sobrenatural enquanto eu me apoiava nas ciências exactas (estava a terminar o curso de Matemática). Se nos encontrássemos hoje ela poderia constatar que os conceitos de Esquerda e Direita foram perdendo para mim o sentido e que estou mais apto a justificar porque é que as superstições e os horóscopos não cabem na visão que fui formando do mundo onde a responsabilidade não se coaduna com tais muletas.
Demo-nos bem nesse ano: participámos na Aventura no Castelo, actividade organizada pelo núcleo de estágio da Amélia que nesse ano foi em Ourém, na actividade em Mafra e na Aventura na Lousã na qual, não podendo a Amélia estar presente, se fez representar pela Tânia, uma das estagiárias por si orientadas. Com a aproximação do final do ano, a Amélia propôs-me para o secretariado de exames sem me consultar o que significava que a partir do final de Junho, enquanto os outros professores só lá poriam os cotos para fazer uma ou outra vigilância de exame, eu teria que estar muito mais presente para garantir que tudo decorreria como era suposto (e ainda assim consegui fazer merda ao trocar um envelope de Português por outro. O Joaquim, um colega de Português do secretariado, veio a correr quando já havia dado o toque a partir do qual nada poderia ser alterado e trocou os envelopes retornando à sala prontamente).
Riamo-nos com o Pedro, o estagiário de História neonazi da boca para fora, pertencente aos Hell’s Angels e que na primeira aula obrigou os putos do oitavo ano a lerem o regulamento da escola de pé (pelo menos foi o que ele disse)!; riamo-nos com o Emanuel e o seu inicio de namoro com a Joana, que viria a ser a sua mulher; riamo-nos quando gozávamos com tantos personagens daquela escola (eramos terríveis…); riamo-nos com o senhor Marques, policia aposentado convertido em contínuo, e com a Anabela, colega de Matemática, e os seus devaneios mimado-estratosféricos mas que reforçavam a sua personalidade única (de vez em quando combinamos um jantar juntamente com a Helena, a minha orientadora). Mas riamo-nos também só os dois e continuámos a rir depois do ano lectivo ter terminado e ela me disse: "Agora não desapareças do mapa!" 
Fomos aos Santos por mais de uma vez, durante um período marcámos presença num jantar mensal que tínhamos acordado juntamente com o Emanuel e a Joana, a Tânia e a Catarina, estagiária da Amélia no ano seguinte e participámos em diversos quizzes quando estes começaram a estar na moda nos bares de Lisboa. 
Alguns amigos iam passando pela vida da Amélia – entravam e saiam – o que a deixava compreensivelmente triste mas outros houve que se mantiveram fiéis. 
Ironicamente, foi ela quem “desapareceu do mapa” sem que me tivesse dado qualquer razão e quando, dois anos mais tarde, me enviou um mail a perguntar o que é que se passava comigo, marcámos um café. Mostrei-me surpreendido esclarecendo quem é que havia desaparecido… ela não se lembrava. Passara por um período complicado mas naquele momento estava melhor. Eu nunca soubera a razão do seu afastamento senão nesse dia. Nos dias seguintes quis combinar uma série de programas mas pedi-lhe um tempo (provavelmente não da forma mais simpática): dois anos era muito e eu precisava de tempo para retomar uma amizade que havia dado como perdida. 
Tranquilamente fomos reatando os contactos mas ao fim de dois ou três encontros ela disse-me que estava doente… foi um choque!
Penso que nos vimos mais uma vez: voltei a não ter resposta aos telefonemas ou às mensagens e a dada altura deixei de insistir. Mas desta vez sabia o que se passava com a sua vida e sinto um aperto sempre que me pergunto por que não fiz um esforço maior para chegar até ela naquele período que eu sabia ser difícil.

Quando vi o nome da Tânia no visor do meu telemóvel não foi só um aperto que senti mas uma angústia instantânea. Em Janeiro de 2015 eu havia perdido novamente o contacto com a Amélia e apenas o facebook nos ia ligando através de um ou outro like perdido na esteira do que em tempos fora uma grande amizade. Eu sabia o que ela me iria dizer mas agarrava com toda a força do meu pensamento ilógico uma ténue esperança que teimava em fugir… que já tinha fugido naqueles segundos em que o toque me anunciava a notícia que eu não queria ouvir.
Estava no escritório e atendi a chamada a caminho da escada do edifício para poder receber a notícia com um mínimo de privacidade. Mas não cheguei à escada a tempo e foi mesmo ali no corredor que ela me deu a notícia, entrecortada por longos silêncios onde cabiam tudo aquilo que eu sabia. Concluiu que "ela gostava muito de ti e gostaria que tu soubesses". Esta constatação deu cabo de qualquer laivo de resistência que eu pudesse estar a aguentar e, terminado o telefonema, todas as ninharias que dominam o dia-a-dia encolheram para a sua real dimensão perante a brutalidade daquele acontecimento.
Era irreversível e eu nunca mais poderia falar com a Amélia. Ela tinha quarenta e nove anos e "gostava muito de mim"… se há episódios difíceis de resolver na minha mente, este é um deles. Não o revisito muitas vezes mas de cada vez que alguma lembrança mais viva da Amélia aflora, as lágrimas materializam-se instantaneamente. E sei que não foi só por ter falecido uma pessoa de quem eu gostava mas também pelo que deixámos de partilhar nos últimos anos da sua vida.

No velório reencontrei o João Pedro já homem. Tinha visto o filho da Amélia enquanto puto no secretariado de exames, uns dias em que a Amélia o levara lá e ele chorara a rir ao ouvir algumas anedotas porcas que lhe contei. 
A sua reacção naquele Janeiro de 2015 mostrou-me o que é a maturidade. Reencontrei a Tânia, a Catarina e a Anabela. E vi os pais da Amélia a receberem quem ali se havia dirigido. Vê-los a eles, que eu não conhecia, mostrou-me o que é estar à altura dos acontecimentos.
Podia concluir o texto com a falta que os amigos deixam ou repetir a reflexão já gasta sobre o modo como nos perdemos em miudezas sem ligar ao que é realmente importante. Mas só tenho vontade de agradecer à Amélia o privilégio de ter podido contar com a sua presença na minha vida, por mais injustos que fossem os meus juízos perante os seus afastamentos. Sempre admirei a luta que travou para ser feliz e, ainda que não tenha conseguido triunfar em todos os campos, venceu algumas partidas e de forma inequívoca. A família e os amigos demonstram-no, bem como a marca permanente que deixou na minha vida.
Ela completaria cinquenta e três anos no passado dia treze.

Marinha Grande, 15 de Setembro de 2018

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