Da Ordem nasce o Caos
As multas começaram a pingar como as gotas irritantes que nos martelam o
cocuruto vindas de uma varanda ou de um telhado sem algeroz. Nos últimos três
meses foram duas, uma grave e outra leve, totalizando 160 brasas para reduzir o
défice. Se fossem por excesso de álcool, ainda poderia dizer que tinha algum
proveito, mas o vinho que estou a beber nunca me provocou nenhum acidente nem
me trouxe qualquer multa. Aliás, a última vez que me senti mal a sério, a
vomitar por cima e por baixo mal me aguentando nas pernas numa prostração que
se prolongou por todo o fim-de-semana e uma diarreia que é bem capaz de ter
batido o record mundial de longevidade foi depois de cinco dias em Marrocos
onde o álcool é o fruto proibido, logo, fica empiricamente demonstrado que é a
falta de vinho, mais do que a sua presença no meu sangue, que me causa
mal-estar e faz chegar multas a casa. Creio estar ainda distante o dia em que
vá parar ao xelindró mas começo a ficar preocupado com as multas que ainda não
chegaram… xelindró… que palavra tão idiota… rima com Badaró, o chinesinho Limpópó que fui ver ao
Casino Estoril quando era miúdo e apenas nessas ocasiões especiais me era
permitido lá entrar. Nem me lembro se o espectáculo era no auditório se no
salão Preto e Prata (nem sei se este já existia)… na altura ainda só bebia
sumo: nada de vinho. Esse veio mais tarde, tarde
demais dirão alguns, mas veio para ficar… a garrafa já passou de meio e
começo a duvidar se consigo ganhar a aposta de a virar por completo enquanto
escrevo este texto: comprei o Lambéria’s
no Mercado de Vinhos do Campo Pequeno mais por piada do que por gosto mas até
me está a saber bem. No entanto, são 14% a escorregar pela goela abaixo mas
pelo menos no word não se nota a
letra enviesada. Só o conteúdo me pode denunciar mas julgo que, por ora, está
dentro dos limites da “Legião de Decência” (ainda não larguei um único
palavrão!!!). Devemos propor-nos metas, objectivos, desafios que nos obriguem a
testar os limites, não é isso que dizem os “fala-barato” do século XXI? Pois
então venham os desafios: dar conta de uma garrafa de Lambéria’s enquanto
escrevo! É que uma coisa que me tem irritado é que no momento em que estou a
abrir uma garrafa, penso na quantidade de vinho que vou estragar: a maior
tragédia de morar sozinho é estragarmos sempre bom vinho e não quero passar a
vida a beber mau vinho só porque moro sozinho mas também não quero desperdiçar
o bom só porque não passo por casa à hora do jantar. O texto está um pouco
aleatório mas já tinha escrito com um copo a mais num dos dias em que escrevi o
artigo sobre a viagem à Jordânia. Demorei três dias a escrevê-lo e num deles fiz
desaparecer mais de meia garrafas de Guarda
Rios, mas era branco e o tempo estava mais quente. O texto baralhou-se na
cronologia mas sempre fora essa a minha intenção inicial, mesmo quando estava
na plena posse do meu juízo, e no entanto: não é que gostei do resultado
final?! Claro que o facto de ter um limite de páginas me fez condensar o relato
parecendo que fogueteámos pelas férias a cem à hora (foi um bocadinho assim mas
tinha que ser para aproveitar bem o tempo). Hoje o tempo está frio e o Lambéria’s é tinto o que parece ampliar
o efeito pois provavelmente não transpiro tanto e o álcool não evapora permanecendo
no sangue mais tempo do que seria suposto. Felizmente que hoje já fiz o que
tinha a fazer fora de casa senão estaria tramado caso apanhasse uma operação
stop! Os braços começam a acompanhar o cérebro numa certa dormência, mas nada
de especial quando da garrafa já desapareceram mais de três quartos! E é
incrível a quantidade de informação que um tipo consegue condensar em poucas
palavras quando está borracho (adoro
está palavra!). Quase que pareço o Borges não fosse a falta de qualidade da
escrita e do conteúdo, quando comparados com os dele. Mas o tipo era mesmo bom
na arte de dizer muito com poucas palavras seguindo o princípio da parcimónia
que me aconselharam no curso de Matemática segundo o qual a demonstração mais
bonita é aquela que, de entre as verdadeiras, é a mais curta. Já o sexo não
pode dizer o mesmo… e continuo numa corrida contra o tempo tentando terminar
tudo o que tenho para dizer e escrever (que nem eu sei bem o que é) antes que o
Lambéria’s me deixe KO). Já afastei o
copo, não venha uma onda de tontura virá-lo e obrigar-me, neste estado, ir
buscar o balde e o detergente mais a esfregona e o diabo a sete…. Não!
Aconteceu esta semana virar um copo quase vazio para dentro da carteira da
Teresa… era de camurça… mas era vinho da casa por isso: menos mal! As letras
começam a dançar á minha frente e experimentei agora mexer-me e… Meu Deu! Que
montanha russa! Se o texto continuar legível, então é porque ainda não passei
para o lado de lá mas só falta meio copo de vinho para superar a prova e no
entanto, nunca na vida apanhei uma bebedeira. Também não vai ser hoje embora
uma garrafa numa noite, ou melhor (à medida que o texto avança, a quantidade de
vezes que faço “delete” e reescrevo o que já havia escrito aumenta exponencialmente!)
… mas dizia eu: ou melhor, uma garrafa numa hora e meia já seja qualquer coisa.
Ainda não terminei o Lambéria’s mas
sinto-me como se tivesse engolido um barril: provavelmente o mal foi mesmo
nunca ter apanhado uma bebedeira na vida já que a de hoje não conta pois eu fico
tonto antes de fazer disparates. Por isso me irritam tanto as multas que
apanhei: a grave foi por ir a 76 kms/h! E nem uma gota de álcool tinha no
sangue! Estas modernices de radares no túnel do Marquês e na marginal só foram
plantados para tramar a gente: eu nunca fiz grandes disparates no trânsito, e
agora corro o risco de perder dois pontos na carta por ter andado no túnel do
Marquês a 76 kms/h… para isto, mais valia não terem feito o túnel! Pondero
(tanto quanto me é possível ponderar neste estado) deixar de passar no túnel do
Marquês para fugir ao radar que me ameaça a carta de condução. Mas amanhã quando
for trabalhar, não passarei no famigerado túnel, embora passe no carrasco da
minha segunda multa – a leve – a da descida do McDonalds (de quem vem de Lisboa
para o Estoril) – e então lembrar-me-ei;
António: guia devagarinho porque senão tiram-te os pontos! E ao olhar para
o copo constato (que palavra tão sublime “constato” para alguém que fez do Lambéria’s um “menino de coro”: eu
também já cantei num coro Maravilhas
sinto em mim! Da alma nasce o meu canto! O Senhor me amou! Mais do que aos
Lírios do Campo!…) que faltam apenas dois goles mas são os mais longos já
que a escrita se resume a rescrita. Para acertar nas teclas tenho que levantar
os dedos do teclado parecendo os escritores de antigamente quando escreviam à
máquina… mas é a única forma de acertar mais vezes senão estou sempre a apagar.
Quando for rever isto estarei 100% sóbrio mas farei por manter a estrutura
destruturada que me saiu com a espontaneidade que se quer! Olho para o lado e
vejo o que falta de vinho no copo (a garrafa está vazia). Ao lado está O Aleph de Borges do qual já nem sei o
que pensar pois bebi os dois goles que me faltavam num único e apetece-me deixar
tudo tal como está e ir para a cama. São nove e cinquenta e nove e tenho medo
de me levantar da cadeira. Tenho que apagar as luzes o que se me afigura um
desafio. Amanhã vou trabalhar! Levanto-me às seis da manhã. Se calhar o domingo
não foi o melhor dia para fazer esta experiência…Incrível como o último quarto do
vinho era tão mais alcoólico do que os primeiros três quartos juntos! Se a vida
for assim, mal posso esperar pela terceira idade!
Caparide, 16 de Dezembro de 2018
O Dia Seguinte
Foi uma estupidez.
Não parti nada nem andei aos tombos pela casa mas as pernas pareciam ter
ganho chumbo pois cada passo que dava, da sala até à cama, dava-o com estrondo,
como que para me certificar que fixava bem o chão. Apaguei as luzes e, além da
cabeça pesada, estava um bocadinho agoniado, por isso, dormi com um alguidar
junto à cama, não fosse o gregório tecê-las.
O texto saiu como é mostrado (uma ou outra correcção que faço sempre) o que
mostra que o efeito do álcool não chegou à pontuação.
Deitei-me e verifiquei três vezes a hora do despertador pois hoje foi dia
de trabalho e tinha que me levantar às seis da manhã.
Não foi bem uma estupidez.
Na cama, coloquei duas almofadas porque o chumbo das pernas havia passado
para a cabeça. Antes de apagar a luz, virei-me para ver as horas pela última
vez e o quarto girou disparado à minha frente. Se estivesse em pé tinha-me
esbardalhado. Felizmente tinha duas almofadas.
Apaguei a luz e hoje de manhã, além de um lastro de agonia e de uma dor de
cabeça moderada, a única consequência da garrafa vazia de Lambéria’s que ficou na mesa da sala foi o aquecedor a óleo ter
ficado toda a noite com as duas resistências ligadas a aquecer o copo e a
garrafa que ontem me acompanharam. Mas seria má-fé atribuir ao vinho o esquecimento:
esquecer-me de coisas, até mesmo do aquecedor ligado, há algum tempo que me é
familiar.
Neste momento não posso ouvir falar em vinho (se tiver enjoado, pelo menos
enquanto o enjoo durar faço uma vida mais barata).
Vendo bem, até nem foi uma estupidez.
Caparide, 17 de Dezembro de 2018
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