No ano passado o
balanço foi feito no dia 31 com vista para o mar, sentado numa esplanada na
Fonte da Telha enquanto agarrava as horas para ir festejar a entrada no novo ciclo.
2019 entrou. Trouxe
consigo mais um Caminho de Santiago, ainda o Português, num incremento para 161
kms. Se tudo correr bem, no ano que se aproxima, dobro a distância… e a
dificuldade.
Em 2019 mudei
finalmente de função (no trabalho, não na vida), novas tarefas, nova equipa, um
desafio que há algum tempo procurava, não sem receio, é certo, mas procurava. Sem
arrependimento (so far), tal como não
me arrependi dos (12) anos onde me demorei com a melhor equipa que eu podia
ambicionar.
Conheci pessoas
fantásticas (quase todas o são em algum aspecto mas quando as conhecemos
tornam-se ainda mais fantásticas pelo fantástico que acrescentamos à sua “esteira”
com o que pensamos sobre elas) e continuei (enquanto vivermos, estamos sempre a
continuar algo) a perceber quem vale realmente a pena manter por perto e quem
não nos deixa alternativa senão largar e ver partir. Afastei-me de algumas sem
outra desculpa além do reconhecimento habitual de que o tempo não estica (os
meus eternos vizinhos, por exemplo…) e confirmei na solidão uma poderosa
ferramenta para partir à descoberta. No entanto, só me foi possível
apreciar-lhe o gosto por poder optar pela alternativa: a melhor companhia do
mundo. Tenho a sorte de ter amigos que qualquer ser humano poderia ambicionar,
poucos por serem os melhores (ninguém tem muitos melhores amigos a não ser numa
rede social). A sorte não oferece o melhor de dois mundos a toda a gente mas
lembrou-se de mim, e foi no ano que está agora a terminar que me visitou a
certeza de que estar só e acompanhado são tão necessários como o frio e o calor
ou a noite e o dia.
Aprimorei a escrita
com os artigos e o conto – uma novidade – e, se insisto nesta empresa (apesar
de (ainda) não ter ganho nada), sinto cada vez mais prazer em inventar histórias
ou sublimar a realidade para uma pseudo-ficção (terminei o último conto na
semana passada estando agora em pousio a aguardar pela primeira revisão).
O início da despedida da Noite de Natal sobre o mar |
Visitei a Laura e a
Vânia em Madrid, fui a Copenhaga e ao Festival de Cinema a San Sebastian onde
me encontrei com a Mel. Tal como Santiago, San Sebastian é outra das cidades
não gigantescas onde pretendo voltar. Em trabalho, fui até Londres matar
saudades daquela que foi outrora a minha cidade favorita para perceber que, com
os gostos e as opiniões, vamos mudando ao longo dos anos (é fantástico como
esta constatação pode consubstanciar uma novidade!) e o rapaz que voou pela
primeira vez na vida para a capital britânica em 1993 não é o mesmo que hoje deixou
de se entusiasmar com a metrópole, preferindo agora outras paragens.
As tatuagens (em
número ímpar, segundo a Patrícia: por vezes acertamos sem querer) atestaram
novo factor de mudança: se algum vez eu pensava gravar alguma à entrada para o
ano que agora finda, quanto mais três…
Os ingleses
reafirmaram a vontade de partir da União, lembrando-nos de que o Canal da
Mancha é mais revolto do que pensávamos, mas foi um inglês que se antecipou e
partiu em Setembro, que vai fazer mais falta: o Norman, numa viagem anunciada,
resolveu dizer adeus ao seu Liverpool campeão europeu. Conhecia-o desde os meus
cinco anos… 87% da minha vida… é muito tempo:
Hi Antonio
Have a great Birthday tomorrow and have your Father take
you all out for a nice meal. We talk about you all a lot and miss seeing you. You
are all thought about by us as very close family and cannot wait until we see
you again which hopefully will not be too long.
Kindest Regards
Norman & Marlene
O último mail que me
enviou, em Maio, ainda eu não fazia ideia da gravidade da doença que o corroía.
Nestas palavras, é triste, mas é também de uma beleza muito humana, a
materialização da esperança como o sonho
que comanda a vida.
Antes, em Abril, o
João saía de cena sem se despedir, uma perda inesperada de quem há muito vinha
fugindo. Não sei se, ao partir, se privou de muitas coisas boas pois
provavelmente ter-se-ia continuado a afundar na vida, mas pelo menos de uma
coisa se desposou: da esperança de um dia conseguir dobrar o Cabo das
Tormentas, não como quem espera o Salvador mas como quem, pacientemente, vai edificando
os pedacinhos de cada desejo.
Os convívios em 2019
migraram para lanches e almoços, com os putos a aparecer como um furacão de
amor numa cristalaria. Dificultam-me a vida na escolha dos presentes, a começar
pela minha sobrinha e a acabar nas afilhadas: despejar roupinhas que me parecem
todas do mesmo tamanho para constatar que afinal serviriam melhor um macaquinho
com o dobro ou metade da idade do(a) aniversariante é frustrante, tal como
andar à cata de brinquedos que, por mais pedagógicos que sejam, me parecem inúteis.
Contudo, para 2020 encontrei a solução para os presentes dos ministars!
Mais limpa, útil e que me poupa à tortura de comprar qualquer merda só para
justificar a refeição oferecida na festa de aniversário!
Foi neste ano que
agora termina que a minha sobrinha se começou a fazer gente. Em 2018 era apenas
cagar, comer e dormir. Agora já dá mostras de pertencer à espécie humana: diz
adeus, faz olhinhos e gosta de cães.
A recepção instantânea do crepúsculo, trajando-se a rigor em 5 minutos. |
Ao cair da consoada,
vi-a! E sabia que teria que encostar e demorar-me o tempo que uma memória leva
a gravar. A paisagem junto ao mar da praia de São Pedro, cinco minutos do
crepúsculo de uma das noites mais longas do ano. E em cinco minutos, alguém
mudou o filtro à paisagem… esbatida no início, vermelho-vivo numa fracção. Um
cruzeiro ruma para a consoada em alto-mar enquanto me preparo para subir até à
Marinha Grande. Nunca me atravessou a ideia de ver descer a Noite de Natal
sobre o mar. Vários curiosos comungam comigo nesta oração embalada pela maresia
e sei que acabei de ganhar a noite antes de ela acontecer.
Não sei se foi 2019
que me trouxe a consciência do envelhecimento dos pais e adultos que foram
atravessando o portão da terceira idade sem que eu me tivesse apercebido (no
meu tempo, ser sénior significava ser adulto; depois de senioridade vinham os
veteranos I, II, III, etc… nos escalões de atletismo; hoje um sénior é um velho
e a palavra vestiu-se de repulsa: universidade sénior, preço sénior, turismo
sénior…). O ano trouxe para terra a assumpção do decair da minha própria
resistência: tenho sono mais cedo e gasto mais energia para obter iguais
resultados. Mas tal advém também de algumas descobertas que 2019 trouxeram e
que, não podendo eu alargar o tempo, vou tentando encaixá-las nas lacunas da rotina:
fatigante, mas bom!
De resto, espero,
desejo e faço por acontecer em 2020 o mesmo que para os restantes momentos da
minha vida, uma cadeia de experimentação e acomodação que, na dinâmica de uma
reacção em cadeia, vai construindo a mudança que (nos) vai revelando um pouco
mais de nós. Porque nem sempre a mudança é benéfica (sinto-me conspurcado por
tantas vezes ver vomitada a expressão “sair da zona de conforto”) nem a
acomodação é má, e é essa distinção que gostava de continuar a apurar: perceber
quando avançar e quando disfrutar do que descobrimos que gostamos. Pode ser
ficar sentado no sofá da sala a borregar numa tarde enquanto vamos perdendo um
filme entre os longos períodos em que viajamos pelos sonhos ou percorrer 315 kms
rumo a Santiago para perceber o valor desse mesmo sofá.
Lisboa,
24 de Dezembro de 2019
Caparide, 26 de Dezembro de 2019
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