É com verdadeiro
prazer que me perco no tempo enquanto leio sentado a uma mesa de café, como se
a leitura tivesse outro gosto quando praticada no meio de outros, acompanhada por
um bolo, uma torrada ou um expresso. E se cada vez leio mais em casa, a verdade
é que o saco de sapatos onde transporto os livros que estou a ler (um em prosa
e outro em poesia) e o caderno, passou a ser presença constante nos meus
périplos.
E se em tempos a
função da leitura na minha vida se resumia a preencher os espaços de tédio normalmente
ocupados pelas fugas que, através do telemóvel, encetamos numa rede social,
fosse numa fila de espera ou enquanto aguardamos a presença de algum
português(a) atrasado(a) (que pleonasmo!), nos últimos anos comecei a criar
condições para poder desfrutar do prazer de ler num espaço público por si
mesmo. Assim aconteceu esta manhã quando, com o corte de cabelo marcado para as
dez, cheguei ao café junto da barbearia pelas nove e um quarto para poder ler
tranquilamente enquanto completava o pequeno-almoço iniciado em casa, sem me
sujeitar ao stress dos atrasos.
Alternando a leitura
com a atenção dispensada aos espécimes que iam visitando o estabelecimento,
oiço a televisão surfar a onda do momento, o Corona Vírus, actualizando
o número de mortos e de infectados – o maior aumento havia ocorrido nas últimas
vinte e quatro horas. Com a atenção dos poucos presentes – incluindo a minha –
presa ao que a jornalista vertia do pequeno aparelho, oiço uma das donas do
café, que havia estacado a meio caminho entre uma mesa acabada de servir
(apesar de não haver serviço de mesa) e o lugar atrás do balcão, sair-se com
uma das pérolas da ignorância do costume:
- Esta história está
muito mal contada… - aguardando as réplicas após tão inteligente observação.
- Agora dizem que foi
um animal, que comeu outro, que tinha a doença… - continua outra “especialista”
à frente da revista Vidas.
- Pois, dizem que foi
o animal ou lá o que é, mas a mim não me enganam… - segue a primeira,
alimentando a engrenagem papagueante da teoria da conspiração.
- Até o médico que
descobriu isto morreu… - a segunda espicaçava a boçalidade da primeira.
- Morreu ou
mataram-no? – devolve de imediato a primeira expert em saúde pública,
doenças infecto-contagiosas, serviços de inteligence e política
internacional. E sem esperar pela resposta – Ele morreu porque sabia demais…
para mim isto foi uma experiência que correu mal…
- Coitadinho do sr. –
lamenta a mulher da Vidas.
- Eles sabem muito e
pensam que nos enganam – cresce a sra. que gosta de “botar discurso” – o médico
foi morto!
A conversa, que se
passou mais ou menos nestes termos, continuou embora neste ponto eu tenha
desligado o esforço para memorizar os termos em que ela aconteceu.
É para mim muito
difícil não carregar estas pessoas de preconceitos – a revista Vidas por
exemplo – ou evitar uma toada elitista quando me aventuro nestas coisas das
teorias da conspiração, sobretudo nas tascas! Independentemente de uma ou outra
destas teorias poder ser verdadeira, a esmagadora maioria serve apenas para
manter as massas na ignorância de modo a conseguir manipulá-las mais
facilmente. Admito que alimente o interesse e até mesmo o ego, a crença de que
o mundo é um lugar onde tudo o que acontece vem com segundas intenções, de que
existe um controlo obscuro por trás dos acontecimentos que nos são mostrados,
ou de que somos mais espertos do que os demais por descortinarmos aquilo que
sub-repticiamente passa ao lado da maioria.
E eu só digo que esta
gente é estúpida.
E é aí que sou
elitista. E, numa manifestação paradoxal, eu próprio entrarei no reino da
estupidez, para esta gente.
Poderia prosseguir
para o campo da ida do Homem à Lua ou da insistência risível dos terraplanistas,
mas correria o risco de apanhar amigos e conhecidos na rede da ignorância.
Acredito profundamente no benefício em vermos piada nalgum tempero com que
regamos a vida, mantendo firmes os pés no fascinante terreno da descoberta do
mundo e de nós próprios, seja através da Filosofia, da Ciência ou da discussão
esclarecida das ideias; outra coisa bem diferente é quando essa curiosidade
ganha contornos de verdade absoluta, normalmente sem suporte de qualquer
espécie por trás, além da esperteza saloia dos tipos à mesa do café que, à
falta do manejo habilidoso de uma rede social, ali encontram todo o público a
que poderiam ambicionar.
Voltei à leitura de As
Chuvas Vieram, claramente mais verdadeiro na sua ficção do que os
disparates que saltitavam de mesa em mesa através do ar altamente contaminado
pelo vírus da ignorância. É também por isso que é bom ler: resguarda-nos, numa
quarentena voluntária, destes patetas. Se ser elitista é o preço a pagar, eu
pago. Uma pechincha, ainda assim.
Como disse um dia
Umberto Eco: “As redes sociais dão o direito à palavra a uma «legião de
imbecis» que, antes destas plataformas, apenas falavam nos bares, depois
de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade. (…) Normalmente, eles [os
imbecis] eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra
que um Prémio Nobel.”
Biblioteca
de São Domingos de Rana, 8 de Fevereiro de 2020
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