Ali estava ela, tal como a havia deixado no dia anterior,
plena de preguiça, dormente no local exacto onde me tinha servido.
A frigideira em que estrelara o ovo para o outro jantar
passara a noite no fogão tendo a escumadeira por única companhia. O pouco
azeite que resistira ao queimado aguentava-se em pequenas ilhas espalhadas pela
superfície antiaderente (sim, já sei que nas frigideiras antiaderentes não é
necessária gordura mas não me passa pela cabeça estrelar um ovo “a seco”: como
tudo o que vale a pena, quando escorrega bem sabe melhor).
Em diversas ocasiões que já me havia imaginado cozinhar
sobre as sobras de outro dia, como se o gostinho especial herdado do preparado
antigo passasse o testemunho à iguaria que se reinventaria a seguir, numa pequena
amostra (tosca, é certo, mas ainda assim bem intencionada) da máxima de
Lavoisier de que nada se cria nem se perde mas apenas se transforma), contudo,
foi hoje que a vontade e a ocasião me permitiram concretizar a hipótese
recalcada.
A frigideira fora deixada a arrefecer, e quando a
desculpa para não a lavar de imediato a encontrou à temperatura ambiente, a
preguiça e o esquecimento, repartidos em doses iguais, tratou de a deixar
descansar em cima do fogão durante a noite.
O desejo fora sugerido em tempos remotos, quando a Sofia
elogiou os queques do Zé Careca e a Alice replicou que um dia perguntou
ao homem como é que ele fazia para eles saírem sempre tão bem… Ó minha
senhora, eu não lavo a forma de um dia para o outro e assim o gosto vai
apurando! Desfeito o mistério dos queques do Zé Careca, a Alice: Quem
não voltou a provar lá os queques fui eu! o que me pareceu mal, ou pelo,
fraca justificação. Não que eu queira julgar a súbita perda de vontade da Alice
nem atentar contra o exercício da sua liberdade, mas o que importa saber como é
feito aquilo de que sempre se gostou sem ter feito mal? E mudar quando nada de
diferente adveio do resultado final da feitura dos queques (alteração de sabor
ou um ataque de caganeira, por exemplo) mas tão só saber que na origem estavam
umas forminhas que não eram lavadas?! Primeiro, cheira-me a superstição, e
sempre que ela aparece, a razão evapora-se o que é algo que me faz alguma
confusão sendo nós os únicos animais capazes de lhe dar uso; segundo, se
fossemos a deixar de consumir tudo o que utilizamos, desde a comida aos cosméticos,
por conhecermos o processo pelo qual vem até nós, talvez só regressando ao
tempo dos caçadores-recolectores; terceiro (e por último), julgo que o Zé
Careca fazia os queques no forno, e as altas temperaturas assassinam
germes, bactérias e outras impurezas com uma eficácia que, em muitas ocasiões,
compete com o detergente com que o homem lavaria a forma desfazendo todo o
sabor dos seus maravilhosos queques em insípidos amontoados de ingredientes
industriais.
A omolete que nasceu do azeite onde o ovo havia sido
estrelado não me soube tão bem como teriam sabido os ditos queques – tão certo
como P ser diferente de NP - mas tal tem mais que ver com eu gostar cada
vez mais de ovos mexidos e menos de omoletes. No entanto, pude acrescentar mais
um check à lista de desejos idiotas com que por vezes entretemos a vida.
Sempre há uma primeira vez.
PS: No dia seguinte a mesma frigideira, desta vez com
novo shot de azeite, fritou camarões! Entre o ácido cítrico que o limão
espremido lã deixou e a chama imensa em que os bichos se demoraram, não houve
bicheza que resistisse.
Caparide,
13 e 15 de Maio de 2020
Comentários