Diziam que o pénis de um negro fazia vários dos nossos e
que tal se devia à morfologia, à genética ou a qualquer outra generosa oferta
da Natureza para com os nossos irmãos, mas isso não o sabíamos ainda. Ou talvez
soubéssemos e, fugindo à confirmação do desequilíbrio, evitássemos discutir o
assunto a menos da zombaria que, sem graça, se limitava a esconder a inveja
inconfessada das nossas mentes retidas na adolescência.
No dia seguinte eu haveria de sair da faculdade
directamente para o estádio de Alvalade, depois de, sem sucesso, ter discutido
uma nota com um professor e comprovado que, nas cadeiras de objectividade
esotérica, a graxa e a subserviência faziam mais por uma colocação próxima de
casa de um futuro professor do que o mérito e a honestidade. Ainda assim, não
haveria de ser um mentiroso (na mais bela analogia que recordo desses tempos,
feita pelo meu colega Emanuel) a estragar o meu dia. O debate fecharia o bloco
curricular do curso: no estágio para professor de Matemática, a iniciar no
Setembro seguinte, já não me sentiria aluno mas um profissional como qualquer
outro, embora então ainda não o soubesse.
Era domingo de Santo António – feriado ao fim-de-semana… um
apego à tradição que, em prejuízo do descanso, tarda em ser corrigido – e
cheguei à Catedral três, talvez quatro horas antes do início. Deveríamos
apresentar-nos com uma antecedência mínima considerável mas eu não queria
chegar no meio da maralha, depois de as portas abrirem, entre hooligans
e carrascos. Creio que sempre fui muito previdente nas questões de horários.
Ainda assim, a vaidade era algo que assentava bem na farda verde fluorescente
da Adidas quando, primeiro no comboio da linha de Cascais, e depois no
metro, viajantes de todas as nacionalidades me tiravam as medidas com um
interesse silencioso. Aproximava-me do destino e o saco que carregava às costas
tão cheio de orgulho continha o canivete suíço oferecido no meu décimo terceiro
aniversário pelo tio Zé Paulo, com que me cortei logo no primeiro dia, quando
deixei cair a lâmina aberta sobre o braço esquerdo apesar dos seus avisos, tal
como os do meu pai – Epá! Olha que por enquanto as lâminas estão afiadas!
– para ter cuidado. Na altura ainda contava os “acidentes” com o objecto da
minha soberba (Que diabo! Era um canivete
suíço!) que repousa ao meu lado, na caneca da secretária onde agora
escrevo: cheguei aos cinco golpes em pouco mais de dois meses, altura em que
parei a contagem apesar de não recordar qualquer mutilação posterior.
A farda e o ar inocente e profissional – afinal eu era membro da organização, pertencia ao staff, tinha uma importante missão a cumprir – com que me apresentei perante o segurança junto à porta que me haviam indicado fizeram passar o saco (e o canivete) sem revista. E o que começou como obra do acaso, vir-se-ia a repetir nas restantes nove partidas de futebol que decorreram em Lisboa durante o Euro2004: o canivete suíço marcaria presença em todas elas sem ser descoberto pelo crivo das apertadas medidas de segurança do evento, mas isso não o sabia eu ainda.
Solitário, fui assistindo à chegada dos voluntários
tentando identificar os três parceiros que comigo formariam a “equipa de elite”,
uma das funções mais apetecíveis entre as disponíveis, apenas reservadas a
homens (que ainda não nos sentíamos) e na qual eu havia caído mais ou menos por
acaso.
Um elemento do grupo de coordenação (não sei se a
Anabela, se o Rodrigo ou outro de que não recordo o nome) chamou-me à parte
quando eu disse pertencer ao Controlo Anti-doping (percebi mais tarde, ao
questionar um delegado da UEFA no decorrer de uma das partidas na Catedral,
que em português, o nome sofre um twist: It should have been «Doping
Control»: we’re controling the doping, not the «Anti-Doping».” –
semanticamente, ambos os termos me parecem hoje correctos, de acordo com o
ênfase sobre o lado do processo em que pretendemos fazer recair o controlo).
Dias antes, havíamos estado reunidos, os quatro, pois a natureza específica da
função assim o exigia: percebi então que, não sendo eu estudante nem
profissional de saúde (iria ser professor de Matemática para, ao fim de um ano
perceber que afinal já não ia; mas isso não imaginava eu naquela altura) o meu
nome fora ali cair devido à experiência, dois anos antes, como voluntário no Controlo
Anti-doping nos Campeonatos do Mundo de Esgrima. O Derek estudava enfermagem
(nas conversas, cedo chegámos à conclusão de termos em comum nas nossas vidas a
Alice, professora (e creio que orientadora) dele, mãe do João e do Joel, meus
colegas de escola e quase vizinhos em Alapraia); o Rossa, eterno aspirante a
médico que entrara no curso pelo contingente especial (os pais viviam na
Alemanha) arrastava-se pelas aulas (segundo o Rui, meu colega desde a segunda
classe até ao décimo primeiro ano, que entrou em medicina depois de abandonar o
Liceu de São João para conseguir a classificação marginal remanescente e assim
perfazer a média de entrada) enquanto colaborava com o Benfica, pertencendo à
equipe médica das camadas mais jovens; e o Ricardo, que era o mais calado dos
quatro (ou talvez esse papel me coubesse…) mas quiçá aquele com quem me
entendia melhor. Tal como o Derek, era lagarto apesar de não ser fanático.
Conduziram-nos para um briefing à parte dos
demais, martelando instruções altamente sensíveis e específicas da natureza da
função (não tocar nos atletas afigurava-se o desafio maior no caso de estes
recusarem acompanhar-nos ao gabinete médico antes de entrarem no balneário após
o fim da partida, sobretudo por não nos ser permitido entrar com eles para
verificar se iam aproveitar para mijar), de onde saímos com o colete azul-bebé (que
ainda hoje mantenho) protegendo-nos a farda, bem como dos impulsos dos
controladores de acessos, protecção essa reforçada pelo bonito cartão
identificador em jeito de crachá de xerife da Catedral (também válida
para Alvalade), e que continha a palavra mágica Pitch, estendendo-nos a
passadeira para podermos pisar o relvado onde tudo iria acontecer, e
aconteceria mesmo no inesquecível Portugal-Inglaterra, onze dias depois, quando
Figo saiu de campo agastado para ser encontrado no balneário agarrado a Nossa
Senhora do Caravaggio (segundo o treinador Luiz Felipe Scolari (!)), Deco
terminou o jogo a lateral direito, Postiga marcou de cabeça entre John Terry e
Soul Campbell, Rui Costa explodiu num verdadeiro golo de raiva, Postiga – de
novo – imitou Panenka, Ricardo tirou as luvas, defendeu o penalty de Vassell para bater logo de seguida David James e colocar
Portugal nas meias, no mais memorável jogo das nossas vidas. Mas nisso, nem que
Deus descesse então à Terra para no-lo contar, nós teríamos acreditado.
A partir desse momento, entrámos no grupo de elite,
diferenciados pelos coletes azuis: Apoio ao público (a melhor função
para ver os jogos), Apoio aos media, Apoio VIP,… nenhuma outra
função nos colocava tão próximo dos nossos ídolos e naquele primeiro dia de
torneio na capital, sem jogos de aprendizagem que trouxéssemos para corrigir
procedimentos, a expectativa e a camaradagem eram tudo o que tínhamos para
enfrentar as “feras”.
Acompanhados até ao gabinete médico onde os mastodontes
seriam sacados para disparar o mijo, um súbito conforto apoderou-se dos quatro
(nisto posso falar por todos), uma alegria instantânea, um respaldo que nos
cobriria a rectaguarda se algo incorrecto por nós fosse praticado: o médico da
UEFA destacado para esse jogo tão importante dava pelo nome de Domingos Gomes,
português, nortenho, médico do Futebol Clube do Porto durante anos e que nunca
se deixou confundir com a ignomínia que acima de si acontecia. Os alhos,
bugalhos e – por que não dizê-lo? – os caralhos com que nos recebeu de sorriso
rasgado mostraram logo que, com ele, estávamos em casa.
Mais tarde, alastrar-se-ia pelas ruas um ambiente como
nunca antes o país havia visto, mas isso não o conseguíamos saber então pois no
dia anterior àquele domingo de Santo António, no Porto, Portugal havia perdido
o jogo inaugural com a Grécia e as bandeiras não haviam todavia contagiado as
janelas e os carros que se passeavam entre adeptos multicolores, multiculturais
e multilingues que pintavam de alegria as ruas, bares e estádios da capital.
Antes de nos distribuirmos pelos diferentes postos e
funções, recolhemos a box com a refeição a que tínhamos direito.
Seguimos então, cada um cheio da sua importância, sem que mais ninguém além de
nós os quatro transportasse aquela (importância) em que nos assentava a
vestimenta azul-bebé e aquele Pitch mágico que que me faria pisar o
relvado onze dias mais tarde quando, antes de os jogadores entrarem para o
aquecimento desse Portugal-Inglaterra, sozinho resolvi entrar no terreno de
jogo, enquanto os primeiros atletas experimentavam o ambiente ainda de fato e
gravata, e pude olhar a moldura humana formar-se nas bancadas, vermelho e
branco a toda a volta da Catedral numa mescla de adeptos lusos e britânicos,
onde se tornara impossível distinguir e apartar nacionalidades pois os adeptos
espanhóis haviam comprado bilhetes para aquele jogo, onde supostamente deveriam
estar. Quatro dias antes dar-se-ia a meia-volta inspiradora de Nuno Gomes em
Alvalade a selar o 1-0 com que viríamos a derrotar nuestros hermanos
pela primeira vez em exactamente vinte e três anos: naquele mesmo dia 20 de
Junho de 1981 havíamos levada de vencida a selecção espanhola num amigável
realizado no Porto. Vencemos o jogo que tínhamos que vencer. Desiludidos, os
bilhetes “espanhóis” haviam sido vendidos no mercado negro a quem os quisesse
comprar, e portugueses e ingleses aproveitaram a oportunidade para confraternizar
na mais bonita moldura que vi formar-se naquele fim de tarde solarengo,
antegosto de uma noite memorável, mas isso estava eu longe de imaginar naquele
momento.
Era o maior evento desportivo alguma vez organizado em
Portugal e creio que a Expo98 rivalizaria com o Europeu de Futebol como
a maior organização ocorrida no país. O ambiente fantástico passou dos campos
para as ruas, para as televisões, para a publicidade em cada esquina com
referências ao evento, tal como para os espaços espalhados por Lisboa (e pelo
país) ou as camisolas que cada adepto envergava. Seis dias mais tarde, o último
desse Junho, depois da meia-final de Alvalade em que Portugal eliminou a
Holanda com um golo de Cristiano Ronaldo (que ali arrancava para o estrelato
intergaláctico) e uma obra-prima de Maniche, adormeci no comboio entre a
desilusão dos adeptos laranja, trajados a rigor, e a provocação de um tuga,
prontamente expulso da carruagem por uma holandesa vestida de tigresa e um
adepto com as três faixas da bandeira dos Países Baixos abertas nas faces.
Envolvido por esse sentimento tão desconcertante que é a vergonha alheia,
fechei os olhos, para os abrir quando o comboio chiava ao parar numa estação
cujas luzes, para lá do edifício da bilheteira, não reconheci logo. Naquela
fracção de segundo, lembrei-me que havia apanhado o último comboio (pela uma da
manhã? Uma e meia?) para identificar a iluminação do Casino Estoril! Foda-se!
Passei a estação de São João! Tenho que ir a pé para casa… foi o que fiz.
Ao sermos conduzidos para o gabinete do dr. Domingos
Gomes por um delegado da UEFA, ouvimo-lo dizer These are the chaperones
ao dirigir-se a um outro engravatado de aspecto cagão (do fundo do meu complexo
de inferioridade, toda aquela brigada da Europa Central e do Norte – apesar da
simpatia com que nos enturmavam – me parecia um bocado cagona). Foi naquele
momento que ouvi o termo. Mais tarde o meu pai disse-me que queria dizer
“acompanhante” e o Luís, meu amigo, completou: Chaperone é um “pau de
cabeleira”.
Relvado da Catedral.
Dia mágico de 13 de Junho. Os quatro sentindo o ambiente nunca antes
experimentado. Olhamos para o túnel de acesso. As duas equipas prontas para
entrar no aquecimento. Vejo-os de aqui e de agora, de onde escrevo, dezasseis
anos depois, ano em que deveria acontecer um novo Euro, inovando desta
vez por toda a Europa; vejo-os liderando cada uma das selecções, como se de
figuras mitológicas se tratassem, cartoons
que subitamente ganhavam vida para olharem para nós, que era o que faziam, sob
uma neblina de ar tremeluzente que não sei hoje se era real ou o resultado da
minha perturbação. Não recordo se alguma palavra saiu das nossas bocas naquele
instante de suprema estupefacção quando vimos David Bekham e Zinédine Zidane,
companheiros no Real Madrid, ora conversando ora olhando na nossa direcção, o
lugar onde tudo iria acontecer, até uma voz manietada por um dos cagões mal
encarados se aproximar, enxotando-nos Vocês não podem estar aqui! dizia
o segurança a mando de um dos soldados da legião de pedantes. Ainda estiquei o
peito para o Pitch crescer para ele mas Isso é para fora das quatro
linhas, e só à boca do túnel! A lição estava bem estudada e recolhemos ao
túnel de acesso, vendo-os passarem por nós, um por um, ao mesmo tempo que um
clamor se levantava lá fora, onde o final da tarde iluminava aquela realidade
tão irreal para nós os quatro.
O Rossa deveria ter-se estreado pouco tempo antes como
alvo do cupido pois o rapaz não só era a minha miúda para aqui, a minha
miúda para ali como não largava o telemóvel nos intervalos da atenção que
nos dava, aproveitando para desenrolar o folhetim do dia do evento quando, já
tarde, saíamos do estádio. Lembro-me de ele ter dito Saiu-me a fava! à
miúda de quem não desgrudava, a propósito do pénis do atleta que lhe calhou por
sorte (ou azar) acompanhar ao controlo no final da partida, mas isso não tínhamos
como saber naquele momento.
As regras foram inventadas para serem cumpridas no início
de qualquer circunstância. Ao começarmos um novo emprego encarnamos o exemplo
da pontualidade tal como ao principiar um namoro vestimos a pele dos pretendentes
mais queridos do mundo! Depois vem a vida e mostra-nos como deve ser vivida: no
caso dos chaperones, tivemos que aguentar a primeira parte do jogo no
gabinete cuja placa colada na porta dizia Doping Control, placa essa que
eu viria a arrancar furiosamente uma vez terminada a final do Campeonato,
depois de todas as mijadelas esguichadas para os frascos, e que durante anos –
quatro pelo menos – esteve afixada na porta do meu quarto como aviso a quem
quer que visitasse a casa de família e necessitasse de fazer uso da
casa-de-banho privativa. Mais tarde, começaríamos a assistir aos jogos da Catedral
da primeira fila para assim fazermos parte do ambiente; em Alvalade a música
era outra ante a triste ideia do Taveira em incluir o fosso para conter o
ímpeto animalesco de quem não sabia estar na vida, e assim, impossibilitados de
cumprir a nossa missão perante tamanho obstáculo (no Jardim Zoológico também
havia fossos para nos separar dos selvagens) ver-nos-íamos obrigados a ver o
jogo desde a sala de controlo Anti-Doping (à portuguesa) pois neste
estádio, além do fosso havia também uma televisão onde pudemos assistir ao
monumento do Maniche ou ao golo do Nuno Gomes que encheu o ego ao Scolari, mas
isso não sabíamos nós naquele dia quando, ao intervalo do jogo inaugural na
cidade, pudemos testemunhar pela primeira vez o procedimento que nomearia os
jogadores para comparecer no controlo mal terminasse a partida. Antes, ao
minuto trinta e oito, ouvimos o primeiro festejo ensurdecedor desde o bunker
de onde toda a emoção nos estava vedada, e o dr. disse que a Inglaterra tinha
marcado. Mais tarde soubemos que fora Frank Lampard quem inaugurara o activo.
Os delegados ao jogo de cada uma das equipas foram
chamados à sala de controlo Anti-Doping assim que o árbitro deu por
terminada a primeira parte e primeiro um, e depois o outro, tiraram duas fichas
cada de saco contendo todas os números dos atletas convocados: estavam
encontrados os quatro jogadores que nós, os chaperones, não poderíamos
mais perder de vista. Após nos ser entregue uma pasta e indicado o jogador que
teríamos que escoltar, deveríamos seguir para o túnel de acesso dez a quinze
minutos antes do apito final. Qualquer jogador expulso durante a primeira parte
deveria ser encaminhado para o controlo até se saber, ao intervalo, se iria ser
controlado ou não. Os substituídos que se dirigiam ao balneário idem. Começava
então a negociação – não nesse primeiro jogo, em que acatámos o nome que nos
havia caído na pasta; só nos seguintes, mas a isso não nos atrevíamos ainda –
numa tentativa de nos fazermos acompanhantes (chaperones) do atleta da
nossa preferência. O nervoso-miudinho que a todos atravessava fora potenciado
pelos insistentes avisos, quer do delegado quer do dr. Domingos Gomes, o
gadelhudo simpático, Olhem que não podem tocar no jogador: pode ser motivo
para se recusar a fazer a análise… Não podem entrar no balneário em
circunstância alguma… Cuidado que os jogadores que perdem vêm um bocado mal-humorados
(e os que ganham também, como viria a testemunhar depois do Portugal-Inglaterra
quando acompanharia Rui Costa ao controlo e, se o magnífico golo que viria a
marcar e a passagem às meias o deveria ter deixado em delírio, o penalty
falhado traria até mim um homem irritado no momento da descompressão,
compreensível mas que me levaria a insistir que não podia entrar no balneário
sem a autorização do médico Tá bem! Tá bem! Foda-se, Caralho! mas acompanhar-me-ia,
pois arriscar uma suspensão seria bem pior do que sacar da gaita para mandar
uma mija.
Foi-me entregue a pasta com o nome de Wayne Bridge. Não o
conhecia nem mais gordo. Lateral esquerdo do Chelsea, clube pelo qual acabara
de assinar José Mourinho, logo me pus a examinar a fotografia para “não o
perder de vista”. Está no banco
alguém terá dito. De imediato, comecei a torcer pela Inglaterra (não queria
abordar um jogador “um bocado mal-humorado”) regozijando-me com o resultado. Descansei
a emoção: estava mais próximo de não trazer um derrotado, pelo menos. O jogo
foi perdendo a razão – apesar de não o podermos testemunhar, alguém nos disse
que Bekham havia falhado um penalty… comecei a não gostar dos contornos
que a história estava a tomar – e quando nos abeirámos da boca do túnel para os
minutos finais, o confronto havia resvalado táctica abaixo para um duelo de
nervos, convertendo-se numa daquelas partidas que os comentadores gostam de
cunhar como “impróprias para cardíacos”. Se aos noventa minutos eu mentalmente
roía as unhas enquanto assistia à contenda, com os bancos, um de cada lado, sem
darem mostras de acalmar e o resultado seguia “a meu favor”, três minutos
depois a França vencia, um livre irrepreensível aos noventa e um minutos e um penalty
dois minutos mais tarde, ambos marcados por Zidane, activaram o medo e a
atenção com que não mais desgrudei os olhos de Wayne Bridge.
Não fazíamos então a mais pálida ideia de que John Terry,
o grande central da selecção inglesa e do Chelsea, andava (ou viria a andar?)
envolvido com a mulher de Bridge. Colegas no clube e na equipa nacional, a
história estoiraria nos tabloides britânicos seis anos mais tarde, em
2010, mas naquele momento, Bridge personificou toda a sorte que eu poderia ter
tido na estreia: simpático, calmo, parco nas palavras mas colaborativo, acompanhou-me
sem trejeitos de estrela, sobretudo de estrela derrotada. O banco teve a sua
quota parte de responsabilidade mas algo da sua reacção talvez se deva ao
carácter pensei surpreendido, até porque eu próprio não creio que viesse a
reagir com tamanha estoicidade se a minha equipa levasse dois golos após os
noventa minutos numa fase final de um Campeonato da Europa de Futebol.
Pelos jogos subsequentes na capital, viríamos a soltar a
responsabilidade que o cumprimento das regras apertava e começámos a pedir aos
jogadores que paravam pelo controlo camisolas, meias, ou calções, abordagem que
era obviamente proibida no desempenho da nossa função. O Derek era o mais
espertalhão – tirava-se-lhe logo a pinta – e foi ele quem inaugurou os pedidos que
todos sonhávamos fazer. No final do torneio, não me queixaria do saldo que
levaria do Euro2004: além da placa
que figurou como guardiã da lei na porta do meu quarto, vim abastecido com as
meias de um russo após o Portugal – Rússia três dias depois (quer-me parecer
que o tipo se esqueceu delas: não me estou a ver, desde este exercício de
memória que se vê forçado a recuar dezasseis anos, a abordar um russo para lhe
pedir o que quer que seja), uma camisola do Prso, no final do Croácia –
Inglaterra, também na Catedral,
no dia vinte e um de Junho, e os calções do Ricardo Carvalho. Sei que trouxe os
“verdinhos” com o número dezasseis de Alvalade mas não consigo precisar se foi
dia vinte, depois do Portugal – Espanha, ou trinta, no rescaldo do Portugal –
Holanda. Certo é que acabaria com um equipamento quase completo: faltaram as
chuteiras e o caneco… mas isso não o sabíamos nós ainda.
No jogo seguinte de Portugal, a ficha com o número 7
sairia ao Derek: o cabrão trouxe o Figo, ar de bad boy para não beliscar
a imagem. As palavras que trocou com o russo que, tal como ele, aguardava a
chegada da vontade para mictar, recuaram dez anos e meio, até ao amigo que no
dia 15 de Dezembro de 1993, então com vinte e dois anos, terminou a carreira: Do
you know Cherbakov? – No (poucas palavras) – He’s my friend. Cherbakov
is my friend. Nesse dia perguntou se alguém tinha um abre-caricas (os
jogadores podiam beber cerveja para seduzir o mijo). Saquei do canivete suíço e
quando o gabarola, ao mesmo tempo que atestava Eu já trabalhei num bar!
abre a lâmina, começa a tentar arrancar a carica, feito nabo, sem dar pelo
facto de o canivete ter precisamente um abre-caricas. Ainda hoje a oferta do
meu tio Zé Paulo conserva o vinco feito pelo azelha que já tinha trabalhado
num bar.
Mas a azelhice maior estava marcada para a estreia
quando, no final daquele França – Inglaterra, o Rossa deixou escapar o pénis de
Marcel Desailly para dentro do balneário onde havia sido expressamente proibido
de entrar. Estranho como o aspirante a médico havia deixado fugir uma coisa tão
grande, pelo menos segundo a ideia quase mitológica que de tal instrumento
fazíamos. Diziam que o pénis de um negro fazia vários dos nossos e que tal
se devia à morfologia, à genética ou a qualquer outra generosa oferta da
Natureza para com os nossos irmãos, mas isso não o sabíamos ainda. Ou talvez
soubéssemos e, fugindo à confirmação do desequilíbrio, evitássemos discutir o
assunto a menos da zombaria que, sem graça, se limitava a esconder a inveja
inconfessada das nossas mentes retidas na adolescência. Aparece o rapaz
esbaforido dentro da sala do Controlo Anti-Doping onde a tranquilidade
cavalheiresca de Wayne Bridge aguardava a sua vez para sacar a gaita e doar o
líquido à ciência, isto é, ao doutor Domingos Gomes, doutor-vulcão que começou
a arfar na iminência do escândalo que se perfilava no horizonte, no primeiro jogo
da Catedral, quando chega o fugitivo, arrastado pelo seu delegado.. Tu Ici!
berra o doutor Ok, ok, calm… tenta apaziguar o esquivo dono do pénis que
ameaçou gazeta Don’t play with me!... Ok, ok… e para nós, depois de nos
piscar o olho Mas este tipo julga que brinca com um português, ou quê!? Eu
só do Nuorte, caralho! (juro que ele disse “caralho” e não “carago”,
daqueles “caralhos” que morrem no final da pronuncia mas que ainda assim se
deixam identificar pelo “lh” em vez do patético “g” que nem é vernáculo nem
deixa de ser).
Saiu-me a fava!
dizia o Rossa ao telefone para a namorada (era só mel) enquanto abandonávamos o
estádio. A fava sair-nos-ia na final ante a Grécia, mas isso estávamos longe de
imaginar, sabíamos sim que teríamos outros nove jogos pela frente e uma das
experiências mais engraçadas que vivi enquanto voluntário. Necessitaríamos de
esperar doze anos para podermos finalmente festejar um Campeonato da Europa com
uma equipa onde apenas Cristiano Ronaldo e Ricardo Carvalho coincidiriam com
essa que acompanharíamos até à final do nosso descontentamento. No entanto,
naquele dia tudo estava ainda no início e os coletes azul-bebé continuaram a
passear a sua importância entre a Catedral
e Alvalade durante aqueles maravilhosos dias de Junho e Julho de
2004.
Tanto que ainda não sabíamos nesse dia, e talvez seja
essa abençoada ignorância que torna tudo tão especial: soubéssemos
antecipadamente que iriamos “limpar” os ingleses por intercedência da Nossa
Senhora do Caravaggio, que alcançaríamos a final para cumprir a dobradinha e
demonstrar, para mal da nossa tristeza, que a História também se repete, ou que
viríamos a vencer aquele mesmo torneio anos mais tarde quando ninguém
acreditava na equipa a não ser o seleccionador Fernando Santos Eu já disse à
minha família que só vou dia onze para Portugal… vou ficar cá muito tempo
ainda… só vou dia onze para Portugal, dia onze do mês que vem… e vou lá e vou
ser recebido em festa, e teríamos sido mais felizes?
Mesmo sem o termos conhecido, o badalo do Desailly marcou
aquele primeiro dia do “nosso” Euro. Mal sabíamos nós ser aquilo que nos
esperava. O Rossa que o diga.
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