Boas Leituras

Lembro-me de a minha avó dizer, e eu pude testemunhá-lo várias vezes nos períodos de Verão em que passava férias na Marinha Grande, que o velho televisor Grundig do botão vermelho (na altura não devia ser assim tão velho) ficava ligado todo o dia para lhe fazer companhia. O meu avô morreu em 87 e nas memórias que tenho das férias de Verão já ele não estava presente. Quando ele era vivo, a televisão funcionava com o som no máximo devido à ausência da sua audição. Depois, passou a ser a vida da casa, estivesse ou não a minha avó na sala. Claro que ela também via alguns programas – uns connosco, outros dela, normalmente coisas de “gente crescida” – mas acima do entretenimento, o aparelho cumpria a nobre função de a acompanhar e de lhe transmitir confiança e segurança numa casa grande e vazia.

Desde que estou em teletrabalho – e até talvez antes – também eu ganhei o hábito de ter a minha “Grundig” sempre disponível, ainda que pouco ou nenhum uso dela faça durante os dias, cada vez mais abusados no que ao respeito pelo tempo livre concerne.

Não obstante as críticas que há anos venho fazendo ao Facebook, tendo mesmo conseguido convencer-me de que só por lá continuava devido aos eventos – cinematográficos e literários, sobretudo – cuja divulgação não encontrava igual em nenhuma agenda cultural e à publicitação dos textos que fui escrevendo, a verdade é que continuo a marcar presença naquele catálogo de ódios, um verdadeiro esgoto a céu aberto (em muitos casos) mas que exerce um certo magnetismo voyeurista levando-me a adiar ad eternum o abandono da rede social.

Sem qualquer relação com esta rede social, há cerca de dois anos comecei a alimentar assiduamente uma outra rede, talvez a única que levo a sério para além do FB, que me tem empolgado (o termo é mesmo esse), dada a frescura das contribuições dos meus “amigos”, a elevação das opiniões e críticas que nela caiem e o respeito com que se aceita a diferença: Goodreads é a Grundig que deixo ligada todo o dia, nos cinco dias da semana. Em abono da verdade, é um dos três sites que abro mal ligo o computador (Gmail, Goodreads e Jornal Sol (não tem notícias pagas), por esta ordem). Há dias em que esta rede social para amantes da Literatura fica aberta todo o dia sem que eu a espreite uma única vez, somente para me “fazer companhia” e compensar o stress que um ritmo de trabalho cada vez mais alarve vai plantando. Foi preciso chegar aos trinta e nove para entender a minha avó, pese a diferença entre a razão que a levava a ouvir vozes todo o dia e a que a mim me leva a “sentir” outros leitores.

Ajuda muito não haver política a conspurcar o Goodreads. Ofendidos e moralistas que invadiram as redes sociais com tiques ditatoriais e uma diarreia verbal que em não poucos casos deveriam ser alvo não só de processos judiciais como também de exames psiquiátricos, não têm lugar no Goodreads. Não que a entrada nesta rede social lhes esteja vedada, mas aquele não é simplesmente o seu habitat ou então, ela traz à superfície o melhor que esses mesmos trogloditas escondem na rede social da javardeira.

Ser acompanhado pelo Goodreads durante um dia de trabalho é um bálsamo. Posso não colocar nenhum “gosto”, escrever uma revisão ou actualizar o estado da leitura actual, mas saber que existe um conjunto de pessoas no mundo que consegue comportar-se de uma forma decente a pretexto dos livros (ou não só por isso), leva-me a aflorar a hipótese de, talvez com um bocadinho mais de cultura possamos transformar qualquer coisinha (cultura e desporto). Não que a cultura ou o desporto transformem, por si só, o esgoto num paraíso, mas canalizam o foco para alvos bem mais válidos, nobres, enriquecedores, pacíficos, prazerosos, interessantes,… 


Rinchoa, 31 de Janeiro de 2021

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