Ai, as vacinas... as vacinas...

 


Há dois ou três anos acreditei que o delírio anti-vacinas a propósito da campanha feroz anti-vacina contra o sarampo, era um luxo de tempos estáveis: sem grandes assuntos que nos preocupassem, toca de encontrar um pé de guerra para os revoltados crónicos poderem ter um alvo sobre o qual espumar. Enganei-me: veio a pandemia e, com uma roupagem diferente, aí está de novo o ódio anti-Ciência, corporizado no negacionismo a respeito das vacinas da AstraZeneza e da Janssen contra o Covid.

Não se espera que uma população alargada conheça o método científico ou os processos através dos quais a ciência avança; no entanto, espera-se duas coisas:

1. Que as pessoas confiem num método altamente testado (laboratorial e empiricamente) e que faz da revisibilidade (ó colocar-se permanentemente em causa) e da revisão pelos pares (ó entregar a verificação de cada nova descoberta científica, por mais ínfima que seja, à análise e crítica de outros cientistas, espalhados pelo mundo, antes da sua publicação) a alavanca para que a Ciência progrida nos diversos campos que formam o objecto do seu estudo;

2. Que o jornalismo faça o seu trabalho e tenha a capacidade de se especializar nas áreas de conhecimento que pretende transmitir, de modo a informar-nos, a nós os leigos (em Ciência, no caso), daquilo que é normal acontecer em Ciência, dando a justa relevância ao que é trabalho honesto, e não colocar em pé de igualdade toda a panóplia de pretensas teorias científicas, sob a égide (que hoje chega a ser criminosa) de que “todos têm direito à palavra”. Infelizmente, com a crise dos media e a mercantilização dos furos e dos clics, encontrar um meio de comunicação que subsista com um comportamento idóneo, não sendo ainda uma utopia, começa a rarear.

Não faço ideia se as reservas, por parte de muitos governos mundiais em torno das duas vacinas contra o Covid referidas acima, se prendem com guerras económicas entre farmacêuticas ou entre governos e farmacêuticas; comparando a incidência de casos de coágulos entre os tomadores de cada uma destas vacinas, com a incidência dos mesmos entre os grupos que tomam outro medicamento ou mesmo entre a população em geral, parece-me desprezível a relação, pelo menos de acordo com os números apresentados. Resta-me confiar na comunidade científica que é quem sabe destas coisas. Aos políticos pede-se-lhes a dificílima ponderação entre saúde e economia: isso sim, é política. À data em que escrevo, com meia-dúzia de casos de coágulos, cuja probabilidade de ocorrência é menor do que a probabilidade de sermos atingidos por um raio (artigo do Observador de anteontem, 16 de Abril de 2021), de estes resultarem da toma da pílula anticocepcional ou de uma viagem longa de avião (notícia TVI de 15 de Abril de 2021) ou de outras consequências de alguns medicamentos habituais (mesmo artigo da TVI), os números deveriam ser cristalinos para qualquer pessoa: em seis milhões e oitocentas mil doses administradas da vacina da Janssen, aconteceram seis casos de coágulos (0,00009%) enquanto na vacinação com a dose da AstraZeneca, ocorreram cento e sessenta e nove casos em trinta e quatro milhões de doses (0,00050%) (notícia do Expresso de ontem, 17 de Abril de 2021). Obviamente que as suspeitas devem ser investigadas, sobretudo se os casos incidem mioritaria ou totalmente num subgrupo (homens/mulheres, novos/velhos, etc…) mas perante estes dados, negar tais vacinas a uma população é estender a passadeira ao manicómio global em que o mundo se vinha a transformar antes do Covid e que agora se instalou de vez.

Tradicionalmente era na Esquerda que pululavam os cruzados anti-Ciência, essa corja de malfeitores que nos queriam contaminar de químicos para nos controlar e ganhar muito dinheiro, por contraponto aos chás de ervas e bolinhas de açúcar, cuja candura natural bastava para nos curar de todos os males. O ponto de viragem nesta atitude da Esquerda deu-se, creio, com o enorme dano causado pelo movimento anti-vacinas nos Estados Unidos a propósito da vacina anti-sarampo: à conta deste devaneio, uma doença erradicada voltou e os adeptos anti-Ciência (conceito que se mistura perigosamente com o anti-sistema) ganharam algum juízo.

Sintoma deste cubo de Rubik esquizóide em que vivemos, a Direita tomou o lugar anti-sistema que antes cabia à Esquerda (não nos esqueçamos da ideologia dos movimentos que partiam montras nas reuniões do G7 e do G8 nas décadas de 90 e 2000) e, à boleia deste contra-senso anti-sistema veio o movimento anti-vacinas. No meio de uma pandemia!

[Nota: Acho uma certa graça a quem se diz anti-sistema: ninguém pode ser anti-tudo; anti-negros, anti-homossexuais, anti-mulheres, anti-homens, etc… sob pena de restarmos apenas nós no mundo: egocentrismo, narcisismo ou qualquer outro ismo agregado em pequenas ilhas de “heróicos resistentes contra os «outros»”. Contudo, não podemos, de forma alguma, sucumbir ao medo de nos chamarem anti-sistema ou de fachos para que aceitemos os privilégios que muitos chamaram a si, seja com isenções, imunidades, subvenções vitalícias ou mesmo trocas de favores, corrupções, etc…]

Voltando às vacinas, o mesmo argumento – probabilístico – para negar a uma população a direito a uma das duas vacinas mencionadas, pode ser utilizado a favor da proibição de muitos medicamentos cujo uso acatamos sem questionar ou saber a probabilidade de determinado efeito secundário. De acordo com os números apresentados, não deveria ser necessário constatar a extrema irracionalidade (a raiar a loucura) de rejeitar um medicamento porque uma pessoa num milhão teve um coágulo, sobretudo quando ele tem uma eficácia de 60%, 70% pu 80% perante uma doença com as consequências que se sabem.

Se eu pudesse, seria já hoje vacinado com uma das duas vacinas que outros (particulares, mas também governos) rejeitam. Repito: não sei se tal decisão resulta de uma opinião de especialistas (ainda que parcial), ou do medo da opinião pública, que cada vez mais surfa a onda da ignorância do momento, e o consequente medo de perder votos. No entanto, perante o que nos é dado a conhecer, sei formar uma opinião e é por isso que considero criminoso privar-nos a todos de uma vacina cuja relação custo-benefício é escabrosamente benéfica. Se esta atitude fizer jurisprudência no tribunal popular e não conseguimos ver isto então, de agora em diante não conseguiremos ver nada: as decisões políticas passarão a ser tomadas de acordo com a vontade de quem gritar mais alto.

Infelizmente, se não se arrepiar caminho quanto a esta decisão, acredito que será a Economia a forçar a que algum juízo entre nas cabeças dos decisores: Estados Unidos e Reino Unido levam anos-luz de avanço face à União Europeia no que respeita à percentagem de população vacinada. Quando as suas economias começarem a abrir sem soluços, dado a sua população se ter aproximado da imunidade de grupo, e a Europa continuar a reboque do histerismo negacionista ou da vingança brexitiana, com confinamentos ao pé-coxinho enquanto milhões de trabalhadores vêem as suas vidas definhar por contraponto com os daqueles países que no momento-chave não abandonaram a vacinação, então o desespero levará a que valha não só a AstraZeneca ou a Janssen, mas também a Sputnik V, a vacina Chinesa, chá de raíz de embondeiro ou vapores de fezes de rato-esquilo. Não sei se será tarde demais para recuperar os empregos e a actividade económica que entretanto se perderam, mas será seguramente tarde demais para recuperar as vidas que, por lhes ter sido negado o direito a poderem escolher tomar uma vacina “encostada” por critérios enviesados, não resistiram; essas e as outras: a sobremortalidade não-covid foi, à data que escrevo, em Portugal, de 30%, isto é, do excesso de mortos no país, num ano que levamos de pandemia, cerca de 30% nada têm a ver com covid mas sim com tratamentos, diagnósticos e/ou acesso a consultas ou outros cuidados de saúde que deixaram de ser feitos.

 

Rinchoa, 18 de Abril de 2021

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