A Guerra é a Guerra

 


Por diversas vezes aflorei o romantismo com que escrevemos (eu escrevo) sobre tempos passados, como se as dificuldades sentidas em cada época ou evento se diluíssem na beleza da evocação de algo que “já passou”. A II Grande Guerra é para mim o exemplo maior deste retrato distorcido de um tempo anterior. A Batalha de Estalinegrado, o cerco a Leninegrado e o Inverno russo a leste; a Batalha de Dunquerque, das Ardenas, de Inglaterra ou o desembarque das tropas aliadas na Normandia na Europa Central, o esforço da Ciência em cada um dos lados do conflito, com as V2 alemãs, a criptografia e a máquina de Turing ou a fissão nuclear; e por último, o inimaginável inferno, para lá de toda a capacidade de compreensão, que foi o Holocausto, com a tentativa de extermínio de um povo e o escabroso e insensível sadismo de (parte de) outro.

Até hoje, se olhava para todas estas dimensões com um misto de respeito (conferido sobretudo pelo cinema documental, mas também por alguma ficção) e fascínio (há algo de fascinante em ver os civis abrigados nas estações de metro londrinas ou em testemunhar as acções da resistência francesa). A partir do passado dia 24 de Fevereiro, o fascínio esfumou-se e uma angústia que nunca havia sentido ocupou o seu lugar.

A invasão da Ucrânia por parte de Putin – não da Rússia, a ver pelas heróicas manifestações de russos que se mostram contra a invasão – veio virar do avesso toda a concepção que nem o Cinema, os livros ou as aulas de História conseguiram. Não é só por ter a guerra mais próxima ou ter atingido um país mais “parecido” com o meu. É pelo medo que começou borbulhar em mim, assente na loucura de um tirano expansionista que possui um arsenal nuclear suficiente para dar cabo de vários planetas Terra.

A incerteza apaga qualquer romantismo que o conforto de uma escrita ao computador na secretária de casa nos confere. A invasão impressionou-me como talvez só o 11 de Setembro o havia feito antes. Às primeiras notícias, no Zêzere enquanto tomava café antes de entrar no escritório, fiquei anestesiado. Depois veio a angústia e a clara sensação de que desta vez era diferente. Mesmo que amanhã caia um cessar-fogo, dificilmente voltarei a estar descansado enquanto Putin for vivo.

Nestes dias, dou por mim ansioso antes de cada serviço noticioso, tal é a apreensão com que aguardo saber se Kiev já caiu ou se Zelensky morreu. Zelensky tem sido o exemplo do verdadeiro herói, um David que, ainda com o apoio e solidariedade do mundo decente, trava uma luta desigual contra um tirano louco e, à data em que escrevo, está a dar luta. O homem tem uns colhões que vão de Kiev a Vladivostok! O presidente ucraniano teve a possibilidade de abandonar o país, mas decidiu ficar e lutar. Não tenho arte para encontrar as palavras que este homem merece por isso fico-me pelo respeito e pela intenção da homenagem que muitos de nós, que admiram esta atitude, lhe devemos (hoje ainda está vivo).

Um pequeno conforto vem de uma atitude mais ou menos concertada da grande maioria dos países do mundo, com sanções firmes contra um déspota. O déspota subiu de tom e começa a ameaçar com o nuclear. Ainda que o devamos levar a sério (os loucos devem sempre ser levados a sério pois a loucura é o seu normal), o desespero que demonstra, por mais paradoxal que possa parecer, traz-me alguma esperança.

Outra ténue luz no horizonte, essa mais pessoal, tem a ver o apaziguamento de alma que sinto ao ver tantos a pensar e sentir o mesmo que eu. É mais fácil não assistir a esta loucura sozinho. E numa situação em que é tão gritante a diferença entre o Bem e o Mal, é tão à prova de fanatismos saber de que lado está a decência e a humanidade, pasmo com a ortodoxia de alguns políticos.

Que fique para memória futura o que foi dito nos primeiros tempos por alguns políticos da nossa praça. A emenda ranhosa com que tentaram lavar a face mais não foi do que uma reacção à esmagadora condenação à lenga-lenga do Imperialismo Americano. Ninguém nega os erros dos Estados Unidos na História, mesmo na História recente; só que perante esta barbárie, este não era o tempo para ressalvas: era a altura para demonstrar inequivocamente ao mundo a condenação por, para lá de toda a clubite, de todo o fanatismo, corporativismo ou associativismo, haver homens, mulheres e crianças que estão a ser agredidos por um criminoso. Colocar uma solidariedade ideológica que hoje é apenas histórica acima destes valores, é mostrar não estar ao nível de um voto em prol da humanidade. Pior, se notarmos que as acções de Putin estão hoje muito mais próximas da Extrema-Direita do que da Extrema-Esquerda. Mas enquanto um fanático for um fanático, nada disso interessa. Quando vierem falar de linhas vermelhas, lembrar-me-ei da falta de decoro desta gente.

Portugal não foi invadido nem está em guerra, mas bastou este acontecimento para eu aprender a olhar para o passado com o respeito que talvez nunca eu tenha depositado nele. Viver em tempo de guerra é algo que dificilmente conseguiria traduzir por palavras até esta semana. Continuo a não viver o horror da incerteza sobre se voltarei a ver familiares ou amigos, sobre se o meu prédio ou o do lado vai ser atingido ou ter que recolher ao toque de cada sirene; mas senti medo e uma outra incerteza, a incerteza de não saber o que um louco vai fazer a seguir quando tem poder. Se poucas dúvidas tinha sobre os três piores facínoras da História recente – sem ordem: Mao, Hitler e Estaline – deixei nestes dias de conceber como é possível, não só defender o papel de algum destes três tiranos nos dias de hoje, como encontrar atenuantes ou ressalvas ao estilo do que temos visto “Mas os Americanos…”, “A Ucrânia não tem que pertencer à NATO” ou outras diatribes. Por mais ingénuo que possa parecer, não há lugar para este tipo de condescendência na minha vida. Coisa diferente é o direito à existência: terão todo o direito de existir; eu não sou é obrigado a ser amigo de quem actua desta forma.

Há muitas injustiças e corrigir no Ocidente, sobretudo quando colocamos no prato da balança o que alguns países do Oriente ou Médio Oriente têm sofrido para que se mantenha o nível de vida deste lado dos Urais. Contudo, é para mim impossível não sentir orgulho na atitude do Ocidente, sobretudo da Europa, dos agentes desportivos às sanções económicas, do fornecimento de armas à Ucrânia (sim, sinto orgulho em, até nisso, apoiar os mais fracos) à fortíssima corrente de solidariedade.

Nada como um banho da pior realidade para perceber de que lado da História devo estar. Isto não é académico: é real. Vacilar neste momento dá-me nojo. Posso estar receoso, impressionado ou angustiado, mas este conflito é de tal forma claro, que não requer grande inteligência, clarividência ou humanismo para saber de que lado devo estar: o da paz dos Homens. Foi Eisenhower quem disse “Teremos paz, nem que tenhamos que lutar por ela.”. Havendo algum espaço para a diplomacia, este é sobretudo um tempo de luta, pelo menos enquanto Putin for vivo. Para reganharmos a esperança da paz.

Admito que seja uma questão de tempo até a Ucrânia ser totalmente tomada. Mas admito também que os déspotas não poderão rir por muito tempo. Se tudo isto vai lá sem recorrer a armamento nuclear não sei, mas como dizia Eisntein, se tal acontecer, a guerra mundial seguinte será certamente com paus e pedras.

 

Belmonte, 27 de Fevereiro de 2022

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