Milú

Lembro-me dela desde sempre. Quase todos temos aqueles familiares dos quais, sabendo ser filha de um primo da avó, a proximidade dá-se mais pela imóvel convivência através de décadas num meio pequeno – a Marinha Grande – do que pelo grau de parentesco, demasiado distante para, caso nos tivéssemos cruzado numa metrópole, eu alguma vez viesse a saber quem ela era.

A Milú não me era próxima. Talvez nem sequer atingisse o metro e meio de altura. Trabalhava na Segurança Social em Leiria e dava explicações para ganhar um extra. Sempre me lembro dela com a mãe, a prima Alda, com quem vivia. Talvez o facto de ter nascido com alguns handicaps (a estatura era o mais benigno) a que acresciam determinados problemas de saúde (os que cheguei a saber) a tenha atirado para uma vida triste, à parte, ao lado da mãe, dedicada quase exclusivamente aos outros, esquecida que ficou a crença na sua própria felicidade.

Depois de 1986, quando saímos da Marinha Grande para Alapraia, não me lembro de ter voltado a ver a Milú até 2005, ano em que os meus pais se separaram. Depois da minha mãe voltar à terra, a Milú e a prima Alda passaram a fazer parte dos convívios de quem a minha mãe se socorreu para, aos 53, voltar a adaptar-se a um novo meio, uma nova vida.

A prima Alda, da geração da minha avó, andava pelos oitentas nessa segunda metade da primeira década deste século. Tinha muita piada, e costumava dizer que na casa do Morais Alfaiate, tinha entrado empregada e saído patroa. Acabou por casar com o patrão, largos anos mais velho, de quem teve três filhos (creio): o Hernâni, o Gustavo e a Milú. Das histórias picantes, sempre dentro da fronteira do respeito, recordo:

- Sabias que o Fernando Mendes, o gordo, foi uma vez ao Ponto de Encontro, o programa do Henrique Mendes? – aguardava pela nossa pergunta:

- Foi à procura de quem? – devolvíamos nós, com alguma curiosidade. A piada estava lançada e a velhota não demorava a completar texto.

- Da Pila! Que já não a via há muito tempo!

E ria, e nós riamo-nos com ela, da piada, do seu riso, da sua capacidade para levar a vida a brincar. A Milú não ria tanto. Foi sempre abafada por quem a rodeava. Sem maldade, porque a vida é mesmo assim, mas à Milú, que nunca casou, coube-lhe a tarefa de acompanhar a mãe até à morte. Também os irmãos lhe entregaram este papel secundário, sem cuidar que talvez fosse ela a estrela maior no palco da família. Foi ela, juntamente com a mãe, quem cuidou de dois sobrinhos, o Pedro e o Ricardo, desde pequenos.

Durante muito tempo, isto foi tudo o que soube acerca desta mulher. Com o início das visitas regulares à Marinha, as novidades foram sendo passadas pela minha mãe. Da surdez progressiva da Milú às peripécias com a cadela, passando pelas dificuldades financeiras à conta de uma vida ao serviço de todos menos dela própria, fui ganhando um respeito crescente pela abnegação deste ser. Não que corrobore tal atitude, mas encarar tal vida com tamanha estoicidade, angustia-me.


Num aniversário meu em que fui à Marinha, a minha mãe convidou-as para um lanche (ou almoço). A Milú resolveu perguntar-me o que é que eu precisava para a casa. Não queria nada, mas perante a insistência (e a possibilidade de melindrar), lá escolhi entre as opções que ela pôs à minha disposição (através da minha mãe): uma faca eléctrica para cortar carne. Creio que de entre as possibilidades, aquele era o único utensílio que eu não tinha. Pouca ou nenhuma utilidade lhe dei (não sou dado a cozinhar, sobretudo carne no forno), mas fiz questão de a trazer comigo quando me mudei; apenas e só por ela, que me ofereceu o electrodoméstico com tanto gosto.

Há um ano, quando mudei de casa, já a Milú tinha falecido. Morreu em Novembro de 2016, à entrada de casa, com a cadela. Ainda teve tempo de bater à porta da vizinha do lado para pedir ajuda, mas o coração não perdoou tanta bondade entregue sem se ter lembrado de bater por si. Tinha 65 e estava a adaptar-se a uma vida autónoma, sem a mãe. Aprendeu a saborear uma certa forma de liberdade muito melhor do que eu antevia.

Ainda a Milú era viva, a minha mãe recordava as idas à praia na juventude, e um lamento que não esqueci: “Ó Nela” – dizia a prima – “Nunca tive um namorado… nem sequer um beijo me deram.”. Devia ser proibido passar por isto. Ainda se fosse uma solidão opcional… devia ser proibido sentir esta incompletude tão visceral, desconsolada, triste.

Foi numa destas visitas que a minha mãe me mostrou os poemas da Milú. Eu desconhecia esta sua veia, tal como a minha mãe ou a minha tia, e antes que se perdessem, a minha mãe teve a (feliz) ideia de os escrever num caderno. Foi assim que mos leu. Mais tarde, reli-os no perfil da Milú, pois, entretanto, ela resolvera publicá-los, num gesto que imagino lhe tenha custado uma generosa dose de coragem.

A Milú foi uma explosão por detonar, contida num ponto-corpo ínfimo, uma fracção infinitesimal de densidade infinita por estrear, sempre por estrear, como a singularidade inicial imediatamente antes do Big Bang. Tanta matéria contida num ponto tão pequenino do Universo… e quanta energia não estava lá dentro, a gritar por liberdade; liberdade que explodiu em verso. Essa explosão que nos revelou a Milú teve na poesia que deixou a sua manifestação visível. Não lhe serviu de muito em vida, mas a arte cumpre duas funções: encontrarmo-nos, e imortalizar-nos. Talvez a minha prima se tenha encontrado nos breves instantes em que agarrou a inspiração. Quanto à imortalidade, pelo menos sobreviveu alguns anos para escrever comigo este apontamento.

Por eles, os poemas, se vê o que o corpo e a vida conseguem esconder. O que esta mulher consegue transmitir por palavras demonstra a montanha de sentimentos que reteve durante toda uma existência. “Nem sequer um beijo”. Não é justo para quem escreve o que a Milú escreveu.

 

AQUI ESTOU EU

Aqui estou eu!
envolta em neblina
que é ténue e me disfarça
a viver a vida que passa!!

aqui estou eu!
envolta no sol
que não me queima mas arde
a viver a vida que é tarde!!

aqui estou eu!
envolta no mar
que ronca, mas conversa
a viver a vida que resta

aqui estou eu!
envolta no vento
que sopra sem parar
a viver a vida devagar

aqui estou eu!
envolta nos sonhos
que ficaram mas em que penso
a viver a vida sem consenso!

 

A minha inteligência 
é suprema,
mas não pura
por isso tem outro lema!!

não passo para o outro lado...
vou rodar em torno,
vou pairar...
sem ter retorno!

vou parar ventos,
e rotações,
travar as marés
e as translações

acabará o hediondo,
o sórdido
tudo girará no sentido avesso
ao dos ponteiros do relógio!!

de lá verei tudo,
não sentirei nada!!
verei a própria pureza
e de alma bem lavada!!!

 

EU SEI

Não me chames 
Nunca!!
tenho a cabeça
cheia de ecos do passado
medos do futuro
já não te quero ouvir
e sei que não vou por aí!!

Não me toques
Nunca!!
tenho o corpo
cheio de espinhos
todo arrepiado
já não te quero por perto
e sei que não te quero sentir!!

Mas não partas!!
nunca!!
se o fizeres
eu sei que irei contigo!!

 

DE REPENTE

Foi de repente!
todas as vozes se juntaram
em perfeito uníssono
numa imensidão de silêncio
num cordão humano de concórdia
numa teia de solidariedade
numa onda gigante de boa vontade
num sentimento de humildade!

Foi de repente!
que da guerra se fez paz,
do ódio se fez amor,
da tristeza se fez alegria,
da ansiedade se fez harmonia
e da esperança se fez certeza!

 

QUANDO

Quando eu estiver triste,
sussurra-me ao ouvido a melodia,
que me faça sorrir, desvanecer,
e me encha o peito de harmonia!

quando eu estiver só,
sussurra-me ao ouvido uma história
de amor profundo e verdadeiro
que de tão grande perdure na memória!

quando eu tiver medo,
sussurra-me ao ouvido a confiança,
acalenta este espírito amedrontado,
de modo que nele persista a esperança!

 

APETECE-ME

Apetece-me falar com a lua,
mas ela sumiu-se,
Apetece-me insultar o vento,
mas ele esvaiu-se!

Apetece-me afagar o sol,
mas ele está em brasa,
Apetece-me remar contra a maré,
mas ela está vaza!

Ah, se me apetece arrombar a porta!
Ah, se me apetece sair para o mundo!
Ah, se me apetece acelerar a fundo!
Ah, se me apetece deixar de estar morta!

se o Ary dos Santos cá estivesse era a ele que convidava para ler este poema!!

 

ERA UMA VEZ ALGUÉM

Era uma vez alguém
que gritava, gritava,
ninguém a ouvia!

Era uma vez alguém
que chorava, chorava
e ninguém percebia!

Era uma vez alguém
que falava, falava
e ninguém a via!

Era uma vez alguém
que amava, amava
e ninguém sentia!

Ai, era uma vez alguém....
«silêncio e tanta gente...»

 

O TEMPO

Ai tempo!
espera por mim,
estou perdida,
não quero correr assim
nesta corrida!

Ai tempo!
estou tão cansada,
e tão dorida,
de não fazer nada,
de pensar na vida!

Ai tempo!
dá-me espaço
deixa-me passar
afinal que faço?
não dá para começar!

 

VENTO

Vento!
Dá-me as boas novas,
Acaricia os rostos alterados,
Arrefece os que estão em brasa,
De tanto ódio, tanta ganância!
Vento!
Sopra para bem longe,
todo o infortúnio,
toda a miséria,
Vento!
Dá-me as boas novas,
da paz, da prosperidade,
do amor ao próximo

 

OS GRANDES SENHORES

SENHORES, dói-me o peito!
de tanto choro, tanto lamento
de tanta vida sem jeito
tanta gente e um tormento!

Um verdadeiro desatino,
gritam, frios, desalentados
à deriva sem destino
e acabam escorraçados

Os outros, os SENHORES
Que dialogam, que ditam,
e a quem tecem louvores
nada resolvem, criticam

 

QUERIA...

Queria dizer quanto te quero
mas não consigo...
Queria dizer o que falta
Mas não te digo...

Queria um abraço apertado
mas não te encontro...
Queria a doçura de um beijo
Mas sem confronto...

Queria estar perto de ti
Mas tu sumiste...
Queria ficar à tua espera
Mas tu partiste...

Queria falar de saudade
Mas não faz sentido...
Queria falar sobre a dor
Mas essa ficou comigo...

 

VAI ANDA VAI

Vai, anda vai
Segue o teu caminho
sem olhar para trás
Embora nem penses
O sofrimento que isso me traz

Vai, anda vai
Segue sempre em frente
amacia o teu coração
Sem rancor nem raiva
Alcança a paz e o perdão

Vai, anda vai
Segue a tua estrela
regressa com o orgulho refeito
Ama em pleno, com alegria
E vê a vida surtir efeito.


Foto de destaque e central cedidas por Ricardo Morais (sobrinho da Milú)

 

Rinchoa, 5 de Fevereiro de 2022

Comentários

Gustavo Morais disse…
Bem haja. Texto lindo sobre a minha irmã, que me comoveu e comove trazendo pela minha memória viva, a sua morte dentro de um contexto desconhecido. Morreu quase nos meus braços, pois quando entrei hospital dentro, estava na sala de reanimação. Não me é fácil falar da minha irmã dadas estas circunstâncias, como parece dever ser óbvio. Sabia da sua poesia, conhecia alguns poemas mas destes ora vindos à estampa, apenas conhecia um ou dois, nomeadamente o que ela escreve ao Pedro (seu sobrinho amado) e mais um ou outro, que não importa. Comecei a conhecer a sua poesia quando ela se apercebeu da enorme coleção de poemas que estava a publicar na net, dentro de uma página privada concebida por uma outra poetiza falecida recentemente. Relembrando Pessoa diria "(…) Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino.
Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só o igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino; estagna só deus fingido, doente da sua ficção (…).
A minha irmã teve o condão de despir a palavra e partilha-a sobre o papel num rosário de textos multifacetados e plurissignificativos que têm o condão, ao mesmo tempo, de possuírem uma perspetiva social, histórica, pessoa e individual. A inteligência e a riqueza de imaginação expressada nos ora poemas lidos e em outros lidos antes, caracterizam de uma maneira geral a sua poesia. Da leitura dos seus versos percebe-se o encanto e a beleza, mesmo quando somos confrontados e transportados das lutas do obscurantismo e da perseguição, para o plano geral dos valores da dignidade e da ânsia do conhecimento ou do saber. Vão-se os olhos por estes versos como música de cravo e cravo que teima nos acordes porque em boa verdade todos esses poemas são um som. Um som que nasce do hábil arrumo do verso, que ora em memória se apoia no decassílabo, ora na redondilha maior, ora ainda na redondilha menor, que senão noutros metros também e onde só o atento ouvido dos olhos (passe a expressão), capta o itinerário e a pauta de semelhante música e eis senão quando se ouve o português que todo o povo foi construindo e aperfeiçoando ao longo dos tempos.
Relembro o que disse Mestre Almada, in "VER": “...nem todo o homem é poeta e só a Poesia tem esse dom de exercitar-se na virtude de chegar ao mundo sempre pela primeira vez a cada instante!”. A minha irmã Milú foi senhora desse dom que só os grandes artistas conseguem alcançar. A sua poesia é a poesia da verdade. Não é uma poesia aprendida, mas sim uma poesia sofrida, suada, nascida onde a artista explode sentimentos pela voz da sua própria imaginação.
Almada disse também, no seu “Elogio da Ingenuidade” que “...em primeiro lugar estão precisamente os poetas, esses que têm o dom de descobrir os próprios fundamentos da vida…”
Como diria Caeiro, “...Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho…”
Ou então Caeiro vai muito mais longe na sua extrema depuração das palavras e dos sentidos, quando, categórico, afirma…” Eu não tenho filosofia, tenho sentidos…”.
Beijinhos Irmâ Milú. Quanta saudade...!