Perdem-se no tempo as
razões por que India e Paquistão se digladiam pela posse de Caxemira. A região,
reclamada por ambos os países, potências nucleares, deve valer muito a pena
para justificar um conflito de décadas. Ou seja, deve possuir riquezas
naturais. Ou então deve ter gente muito especial, gente que pertencendo àquela
terra de ninguém, talvez congregue a melhor humanidade que cada um dos países
tem para oferecer.
O arco de sete mil
quilómetros lançado da fustigada região fronteiriça para Oeste, percorre o céu
e a terra, caindo com suavidade no pequeno território à beira do Atlântico, a
nossa casa. Portugal é o paraíso da Terra. Nunca vivi no estrangeiro, mas quem
consegue superar os baixos salários, ganha nesta terra um impulso para a vida
de que grande parte da população mundial não goza. Depois falta o resto – a
saúde, a educação, o amor ou a sorte – mas superando a dificuldade financeira,
este paraíso à beira da Europa que se confunde com o Mediterrâneo (apesar de
nenhum contacto haver entre os dois) oferece um belo ponto de partida para abraçar
a existência.
Vim experimentando
diversas formas de voluntariado ao longo da vida até me fixar naquelas que
oferecem o que sinto mais falta fazer e mais me apaziguam. Uma delas ambiciona
ir além da supressão de carências imediatas, construindo algo que permaneça
para lá do tempo despendido na acção directa do trabalho voluntário.
Um dos aspectos
(muito) positivos de trabalhar numa empresa grande tem a ver com as
oportunidades proporcionadas pelo voluntariado empresarial, ao conjugar este
desejo de ajudar com o tempo de trabalho, de uma forma que não redunde nas
muitas acções mais ou menos pífias de voluntariado empresarial, que apenas
serve o propósito de maquilhar a imagem ou mascarar a entrada num qualquer
índice de sustentabilidade, mas que cumpra o nobre e efectivo propósito de
ajudar.
Pelo arco deslizaram de
Leste para Oeste há dois anos – talvez mais – duas jovens que andam hoje pelos
treze. Vieram cair em terra estranha, paraíso para alguns, mas ainda não um
paraíso enquanto for estranho para outros. Desconhecendo o idioma, entraram
numa escola dos arredores da capital, na Amadora, e tiveram o apoio da EPIS,
Empresários para a Inclusão. Foi através da parceria desta organização com
a Galp, que após a identificação de um conjunto de crianças e jovens em
risco de abandono escolar, nos calhou no ano lectivo passado, a mim e à
Catarina, dar apoio escolar a Matemática a duas meninas, uma paquistanesa e
outra indiana, que pouco falavam de português.
Revezávamo-nos nos
únicos horários possíveis, eu às quartas depois do trabalho e a Catarina às
sextas logo pela manhã: o milagre aconteceu e ambas progrediram na
aprendizagem, com o nosso pequeno contributo de explicações à distância (sempre
por Teams), em inglês, tentando desenhar formas geométricas e encadear
cálculos e raciocínios num idioma que nenhum dos quatro tinha interiorizado.
Mas a universalidade da linguagem matemática possui essa digníssima propriedade
de se mostrar superior a tais vicissitudes. A meio do ano, no embalo das aulas
de português, unicamente providenciado pela escola onde ambas aprendiam o
idioma de acolhimento, as nossas lições rodaram para a nossa língua. A pedido
delas. Passo a passo.
Já antes havia dado
explicações de Matemática mas estas lições constituíram-se como o maior
desafio. Mas também o mais enriquecedor. Do manual que tardava em chegar à
matéria do ano anterior – o 6º – que nos obrigava a procurar exercícios na
internet no momento; da explicação que não resultava, em português ou em
inglês, à necessidade de abrir o Word e partilhar as equações no Equation,
nenhum outro apoio foi tão difícil e tão gratificante ao mesmo tempo.
Ambas passaram de
ano, embora sejam alunas (e meninas, antes de tudo) muito diferentes. Uma mais
aplicada, outra mais ausente. As duas muitíssimo respeitadoras. É um desafio
mantê-las motivadas com ritmos tão diferentes. Apesar dos reparos, escolher uma
não é opção.
Este ano, quando se
me colocou a possibilidade de voltar ao apoio escolar através de EPIS
com a Galp, não hesitei. Coloquei-me no entanto duas condições: ser em
horário laboral (no ano anterior foi um esforço grande terminar as explicações
próximo das 20:30) e uma vez por semana alternando com um(a) eventual
parceiro(a) em vez das duas vezes.
Na impossibilidade de
a Catarina fazer equipa comigo, falei com a Andreia e tinha nova equipa.
Perguntei se era possível manter as duas alunas e voltámos a Caxemira, agora
non 8º ano.
Tem sido uma
experiência bonita abrir as 3as-feiras de trabalho com uma lição de Matemática
às nove da manhã.
No extremo-oriente do
arco, India e Paquistão continuam a luta eterna pelo controlo de Caxemira;
nesta ponta do mundo, as duas embaixadoras aprendem Matemática em cooperação.
Uma chama-se Gurleen e a outra Zartacha. Pouco importa qual o país de cada uma.
Interessa-nos mais apaziguar a desvantagem de partida que encontraram num local
estranho mas acolhedor, depois de serpentear num arco da vida em busca de
melhores condições.
Num tempo estranho em que eclodiu uma guerra geometricamente desenhada a meio do arco, as motivações e prioridades baralham-se-nos em todos, pequenos e crescidos. Dorme-se pior, os livros perdem fulgor e a comida sabe menos a prazer. Perante a barbárie, tudo se esbate. É necessário ir bem fundo buscar a força da razão e voltar a colar às coisas o valor que antes lhes atribuímos. Elas continuam a valer a pena serem vividas. Nós é que ficámos cegos. Confusos, julgamos que nada tem valor perante o absurdo da guerra: respirar fundo e voltar a inverter a ilusão com que este inferno nos tenta enganar. As lições de Matemática continuam a ser importantes e não há guerra capaz de partir o arco que une estas duas pontas de Caxemira. Por agora, vamos aprendendo umas equações, na esperança de que a escola lhes permita fazer escolhas mais acertadas do que aquelas que podem ser vistas ao longo do arco.
Rinchoa,
4 de Março de 2022
PS: Na lição de
ontem, dia 7 de Março, a Zartacha não apareceu. Disse-me a Gurleen que vai viver
para Londres. Parte no final desta semana. A metáfora de Caxemira acabou três
dias depois de eu ter escrito o texto. Desejo-lhe toda a sorte do mundo, e que
tenha à sua espera uma adaptação mais simpática do que a que aqui lhe calhou.
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