Em Casa do Rui

 


depois alguém tocou à campainha e pensei logo que era o meu pai. Em rigor, não terá sido bem depois uma vez que eu ainda estava a comer, mas recordo a desilusão ao ouvir o toque que certamente fecharia o meu prazer.

Antes, muito tempo antes dessa tarde em que me deliciei em casa dele, conheci o Rui na segunda classe, em Setembro de 1988. Era um ano mais novo mas o avô havia-o ensinado a ler e fazer contas e por isso saltou o primeiro ano. Ainda que nunca tivéssemos sido os melhores amigos, com o tempo fomo-nos aproximando e na passagem para o quinto ano, na Escola da Galiza, a minha mãe falou com a São, amiga que era lá professora, que por sua vez intercedeu junto da Amália, directora, que gostava de redistribuir e aproximar, mesclando etnias e estratos sociais nas turmas, e conseguimos ficar três do Externato na mesma turma: a Filipa, o Rui e eu (e ainda o Manuel, amigo dos tempos da pré).

Entrámos a pés juntos naquilo que ainda não se chamava “escola inclusiva” (talvez neste momento já tenham inventado outro termo por este, entretanto, ter passado a ofender alguém), ou talvez esta tenha entrado a pés juntos sobre nós: no primeiro dia de aulas, o Miguel Varela, meio-cigano (não sei de da parte da mãe se do pai) e um dos rufias da escola (não o sabíamos mas logo ficámos esclarecidos) tirou-me o boné da Heineken no recreio, eventualmente num dos furos de inicio de ano lectivo quando parte das disciplinas ainda não tinha professor. Se um furo era novidade, haver um manhoso a roubar um boné era-o ainda mais para nós, copinhos de leite vindos do Externato Principes d’Avis. O Rui, na altura o garoto mais novo da escola (só faria dez anos em Julho de 1992, depois do ano lectivo terminar), lança um Ó tu que fumas! Dá cá o chapéu!... o Miguel meio aparvalhado dirige-se a nós e Quem é que é o “tu que fumas” ó puto?, sem esperar pela resposta disferiu duas bofetadas na cara do Rui, daquelas cujo estalo é mais real do que os efeitos sonoros do cinema e deixam a cara marcada. Nós, imberbes, fomos fazer queixa à continua. Ela veio connosco até junto do Miguel e representou ali o papel de um diplomata acagaçado Então Miguel, este ano começámos cedo… não pode ser assim… devolve lá o boné ao menino e depois para nós Ele é muito bom menino mas hoje está assim... O rufia entregou-me o boné, o Rui não recebeu qualquer pedido de desculpas e naquele momento percebemos – da melhor forma que se pode perceber qualquer coisa, o “saber de experiência feito” – através daquele quadro representado por dois copinhos de leite, um rufia e uma contínua (hoje: auxiliar da acção educativa), o que era a “escola inclusiva”: levar na tromba de um rufia e nada acontecer por ele ser rufia.

Antes ainda da campainha fúnebre que matou a gula em casa do Rui, tivemos oportunidade de conhecer – o Rui e eu – os dois lados desta vertente inclusiva. Na escola é onde mais nos irmanamos, sobretudo se não nos protegermos por trás do elitismo de um estabelecimento privado, com rankings e hábitos de queque infantil. Curioso como não nos víamos assim quando andávamos no Externato mas talvez no final da década de oitenta/início de noventa a fronteira para o privado não estivesse traçada numa trincheira tão larga para esta ambição desmedida de ascenção social que hoje a insistência cretina nos rakings insiste em reforçar: o ordenado da minha mãe ia todo para as mensalidades – minha e da minha(s) irmã(s) –, éramos dos últimos a sair do colégio (normalmente o Pedro saía depois) porque para pagar aquela fortuna (trinta e poucos contos por mês por filho) era preciso trabalhar a sério e por isso, ficávamos no prolongamento a fazer os trabalhos de casa e a minha mãe só nos apanhava depois das sete. Em casa ainda tinha que nos dar banho e fazer o jantar, que nunca começava muito depois das oito (e há quem não acredite em milagres!). O meu pai também se esfalfava a trabalhar, chegando quase invariavelmente a casa próximo da hora de jantar, tendo tempo para pousar a mala e tirar a gravata antes de nos sentarmos à mesa, comermos durante o telejornal e pararmos todos a ver o episódio da novela (nunca esqueci a Tieta e aquele genérico do Demo!), após o qual lavar os dentes, xixi e cama. Ou talvez fossemos mesmo uns betinhos, pelo menos aos olhos do Miguel Varela e companhia e naquela idade não nos apercebêssemos de o sermos; apenas começávamos a compreender existirem diferenças com que até então nunca havíamos contactado.

e antes ainda de eu ter ouvido o toque da campainha naquele fim de tarde em casa do Rui, mas depois do primeiro furo da nossa vida, contactámos com os dois lados desta inclusão de que a professora Amália era adepta, com razão embora nem sempre da melhor forma (como aliás, acontece com quase tudo o que se faz às cegas). O Rolando era da nossa turma. Jogava à bola e ria connosco, mostrando-nos (e nós a ele) como além de O’Neil, também nós eramos capazes de inaugurar a palavra “amigo”, uma palavra homónima àquela que aprendêramos no Externato, tal era a vastidão que dentro dela cabia sem que até então o soubéssemos. O Rolando não tinha a vida facilitada em casa, vestia pior do que nós mas fazia por nos acompanhar, não só nas jogatanas dos intervalos, mas também dentro da sala de aula. Mais do que o rol de quatros e cincos com que mediamos as pilas para entrar nos quadros de honra, mérito, excelência e todos esses píncaros de que os rankings são os herdeiros naturais, talvez a nossa maior vitória enquanto turma – 5ºH – tenha sido a passagem de ano do Rolando connosco para o 6ºH sem qualquer favor. E a turma, ainda que fosse das melhorzinhas da Preparatória da Galiza (segundo os quadros), tinha betos a sério (não vou dizer os nomes), e outros alunos (que também não nomeio) além do Rolando que viviam no bairro do Fim do Mundo (bairro de barracas paredes-meias com a escola, hoje felizmente extinto).

mas a porta de casa do Rui tarda em abrir depois do toque anunciador, tal como eu me demoro a explicar o segundo lado da inclusão desta segunda história, mas aqui vai: o Rolando rapidamente se entrosou e numa aula de Educação Física, estávamos nós alinhadamente sentados ao longo do banco corrido junto à parede do ginásio numa das primeiras aulas com o professor Luís Leite, o Rui sai-se com um Epá, cheira mal aqui! Ele estava sentado entre mim e o Rolando e de imediato começa a farejar, qual perdigueiro snifando a pista da sua melhor suspeição até chegar à presa. O Rui encolhia o nariz e e semi-cerrava os olhos como se algo lhe cheirasse mal, sempre que não gostava de qualquer coisa na vida. Além disso, tinha o coração junto à boca, não dando tempo para que o sentimento atravessasse o filtro cerebral e assim retivesse as impressões mais inconvenientes. Farejou para o meu lado mas (sorte a minha!) não encontrou nada. Virou-se depois para o lado do Rolando e após um relatório preliminar (na empresa chamamos “Sumário Executivo”) É deste lado que cheira mal! continuou, qual Sherlock Holmes canino a cravar de fungadelas o ar que envolvia o Rolando para sentenciar Epá, é este gajo! Este gajo cheira mal!

Ao final da tarde o Miguel Varela, que nos dias ou semanas que caminharam entre os dois episódios se fizera nosso amigo (aqui amigo tem um sentido muito mais benévolo do que o sentimento que nos unia ao Rolando, este sim, muito mais próximo da amizade que conhecemos), encontrava-se à saída, do lado de fora do portão da escola. Sem termos saído com o Rolando, cumprimentámo-nos e ele pergunta-nos de imediato Quem é que disse que o meu irmão cheirava mal?! Eu disse-lhe que não sabia mas já antes o Rui Tenho que ir andando porque a minha mãe está à minha espera… não fosse levar mais umas bofetadas, e ali, fora do perímetro escolar, não havia continua para dizer que o Miguel era muito bom menino.

Terá sido próximo do Natal que, saído da escola, fiquei em casa do Rui – mesmo em frente – até me irem buscar. A mãe dele perguntou se eu queria coscorões, porque havia feito. Há três coisas que nunca se perguntam: ao urso se quer mel, ao pedófilo se quer uma criança e a mim se quero um doce. Se na altura não era tão desprovido de filtro quanto o Rui, havia palavras-chave que activavam uma qualquer hormona, levando-me a desconsiderar determinadas regras de boa-educação e “coscorões” era uma delas. Sentei-me na mesa da cozinha com o tupperware ao lado. A mãe dele colocou alguns num prato e espalhou açúcar e canela que eu mal deixei assentar, qual foragido da guerra do Biafra em frente ao buffet do Pestana! O Rui provou dois ou três mas dois ou três para mim nem aperitivo eram! Continuei. Os coscorões foram migrando do tupperware para o prato e deste para a minha boca que mal mastigava, na ânsia do seguinte que já se insinuava para mim. Estão muito bons! lembro-me de elogiar interesseiramente. Come mais! dizia ela enquanto o Rui se levantava deixando-me sozinho com aquelas tirinhas. Obrigado! dizia eu enquanto “comia mais” (os meus pais haviam-me ensinado a agradecer e para mim, isso bastava para ser bem-educado). Tendo limpo toda a caixa, a mãe do Rui foi buscar outra com que me continuei a deliciar, solitariamente sentado à mesa da cozinha da casa do Rui (talvez Freud explicasse vir deste episódio a minha fobia em partilhar sobremesas – “pijaminhas” é o termo agora utilizado para este roubo autorizado). Ia a segunda caixa a meio quando a campainha mortífera me engasgou o coração.

O meu pai surgiu enquadrado pelo aro da porta que a mãe do Rui abriu num sorriso que eu não lhe via desde que entrara em casa, uma ou duas horas antes. Ele portou-se bem? estou a ouvir o meu pai perguntar. Ah, portou… respondeu ela. Dúvida e Alarme revolutearam por mim quando a escusa despoletou no meu pai um pedido de confirmação Então, ele portou-se mal? e ela Não… portam-se sempre bem… sem qualquer vigor na voz que o corroborasse. No caminho para casa, tenho ideia de o meu pai ter insistido comigo para lhe dizer se me tinha mesmo portado bem, tendo a mãe do Rui dito aquilo com aquele ar cansado. Só me recordo de lhe dizer que sim, que me tinha portado bem, mas omiti a parte dos coscorões. Por alguma razão que ainda não era clara para mim, eu devia ter feito alguma coisa de mal por ter comido o que me haviam oferecido. Só não sabia dizer o quê.

Hoje, só me arrependo dos coscorões que lá deixei mas durante anos vivi com esta noção do “parece mal” bem vincada. Ainda assim, serviu o episódio e aquelas primeiras semanas na Preparatória da Galiza para compreender que não basta dizer obrigado nem ser beto (para alguns) para se ser bem-educado, como por vezes até podemos cheirar mal e sermos os tipos mais porreiros do mundo.

 

António V. Dias

15 de Maio de 2022

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