Houve uma altura em que as duas gerações lá de casa – cinco pessoas… talvez
quatro porque a Joana devia ser demasiado nova – jogavam, ou melhor viciavam no
Tetris, o puzzle em movimento, talvez um dos jogos electrónicos mais conhecidos
do mundo. Foi antes das consolas (durante muito tempo a Master System
foi a única que andou lá por casa) quando os jogos electrónicos faziam furor e
eu não compreendia o fenómeno pois era apenas mais um jogo electrónico, só que
maior. Não levou muito tempo para também eu ficar agarrado: este jogo era
diferente: todos os demais eram variantes de um mesmo modelo: coisas a cair e
nós cá em baixo, movendo-nos numa linha unidimensional de um lado para o outro
tentando apanhar os objectos (podia ser uma nave a disparar contra inimigos que
vinham de frente (em cima no ecrã), um gato a apanhar os ratos que caiam (tive
este jogo que fez furor num Verão em Vila Real de Santo António no final dos
anos oitenta/inicio de noventa numa competição entre mim e o filho do Jaime,
com dezasseis anos na altura e por isso muito mais velho do que eu), ou
conseguirmos apanhar as frutas que caiam das árvores); o Tetris era outra coisa,
pois além de não ser o habitual jogo do “apanha-bolas” ad eternum,
conferia-nos um grau de liberdade que até então, os habituais jogos
deterministas não faziam: nós podíamos decidir o que fazer com determinada peça
que caía e, não havendo formas erradas ou correctas de as encaixar no
reticulado que íamos acumulando na base do ecrã (monocromático, observação
escusada para quem tem mais de vinte e cinco anos; essencial para os
restantes), tanto podíamos fazer um encaixe perfeito como deixar
propositadamente algum buraco, na esperança de que a peça seguinte nos
permitisse limpar duas ou três linhas de uma vez, baixando toda a base do jogo,
balão de oxigénio que nos possibilitava carregar no pause, respirar
fundo e mantermo-nos “vivos”.
Houve uma altura em que o meu cérebro ficou subjugado pelo Tetris: à mesa
ou na escola, enquanto cagava ou andava na rua, via-me a pensar nas peças, a
descrever jogos mentais como se o treino e a intensidade com que disputava cada
jogo continuassem para lá da máquina, ao plantarem uma semente de adrenalina
que levava a que o jogo não parasse. Em algumas noites, a disputa pelo aparelho
era uma guerra (negociada) entre os quatro.
Trinta anos mais tarde…
Os mails vão caindo sucessivamente na caixa de correio electrónico ao longo
do dia e se começamos a jornada de trabalho a tentar resolver cada assunto que
eles nos trazem com profissionalismo, terminamos a tarde a despachar serviço,
sem cuidar dos buracos que deixamos no painel do jogo, somente para ser menos
uma peça da engrenagem em que temos que pensar.
Desligo o computador ao final da tarde e o cérebro continua, como acontecia
há trinta anos com o Tetris, manietado pelos temas pendentes que não param
nunca de azucrinar, como se a partida continuasse para lá da hora de
expediente. A boa vontade leva-nos a esticar até ao limite o cuidado com que
tratamos cada tema – ler, reler, pensar na resposta, escrevê-la da melhor
forma, anexar mails anteriores, por vezes com um ano ou mais que temos que
procurar, para suportar a nossa posição, e deixar sempre em aberto aquela
atitude entre a firmeza e a simpatia, para conseguirmos mais rapidamente dar um
tema por encerrado. O pior é que quando um assunto é fechado, já dois, três ou
cinco mails caíram com novos pedidos – o Tetris alucinante da vida real – e
damos por nós num vórtice descontrolado em que mal temos tempo para comer ou
mijar, sobretudo se adicionarmos a este jogo viciante (ou viciado?), as
chamadas e calls que caiem nos entretantos, os buracos que vamos
deixando por resolver entre os mails, na esperança de que alguém pegue no tema
por nós ou que o assunto morra de cansaço (às vezes, só para ressuscitar meses
mais tarde com um prazo de dias para ser resolvido e um “mas ninguém pegou
nisto?”, altura em que começa o jogo do empurra e do “também estavas em
cc: o mail foi dirigido aos três”, etc…).
E o calendário do Outlook? Se os mails se aproximam do Tetris de
outrora, ou melhor, do ritmo continuo que impunham ao cérebro mesmo após
desligar o aparelho, o calendário é um verdadeiro puzzle onde encavalitamos as
peças de diferentes formas que compõem as reuniões, só que estas têm múltiplas
dimensões (duração, relevância, se somos actores principais e temos que as
preparar ou somente estamos lá mas podemos desligar a câmara e ir adiantando
trabalho a sério…). É vê-las a saltarem no ecrã, como o “L” ou o “charuto” do
Tetris, por vezes sobrepostas, outras numa sequência alucinante sem intervalos,
como se o facto de no calendário estar um bloco livre significasse que estamos
disponíveis, sem direito sequer a nos levantarmos para comer um cabrão de um
iogurte ou mandar uma mijada! Têm sido à razão de quinze a vinte por semana;
uma média de três a quatro por dia (como é que trabalhávamos antes da pandemia
mesmo?).
Por vezes, lá vou conseguindo marcar as reuniões com intervalos de quinze
minutos de permeio, buracos propositados neste jogo onde não só o cérebro mas
também os dedos já trabalham sozinhos com os movimentos coreografados por
defeito nas tarefas habituais. Então tenho tempo para espreitar um site ou
outro, comer qualquer coisa, ou ir até ao quarto de banho disparar uma cascata
que há muito ameaçava explodir, ou enviar um fax para Tóquio, operação mais
delicada quando os quinze minutos que me separam do compromisso seguinte vão
pingando um a um, como a lâmina de uma guilhotina sobre a minha cabeça, e o fax
que não sai enquanto os minutos são queimados, mais depressa do que os minutos
normais, o computador indiferente à minha urgência a receber mails em catadupa com
o plim anunciador que eu oiço junto ao fax que finalmente começa a ser enviado,
o papel a passar para o lado de lá da máquina de impressão, e uma campainha ao
longe, no escritório, a anunciar que alguém viu que eu tinha um furo de quinze
minutos e acha que pode ligar para uma mini-conferência antes ainda da outra,
marcada, começar, som que me aperta a tripa levando novamente o fax a borregar,
só que agora, ultrapassado o ponto de não retorno, tenho que forçar a peça a
cair, deixando ou não buracos lá em baixo, pouco importa quando a reunião se
vai aproximando, implacável como a lâmina para me cortar o pescoço, e vacilo
numa tentativa desesperada de recolher a peça que já não volta (eu já devia
saber que nunca uma peça sobe no Tetris, mas por vezes julgamos poder dobrar a
realidade a nosso favor), e então regresso à estratégia inicial, abanando a
máquina, dando-lhe pancadas, apertando as entranhas, fazendo restart até
que sinto algo ceder… parece que Tóquio começa a receber os primeiros
caracteres e de repente: o papel sai todo escrito do outro lado do mundo num ploft
perfeitamente arredondado sobre as águas paradas, a peça com a forma ideal para
preencher o buraco que me leva a baixar quatro linhas de uma vez e poder voltar
ao jogo, o suor a secar num ápice, agora que posso voltar a tempo de aparecer
sorridente em frente à câmara no inicio da reunião.
Mal sabia eu naquele tempo em que disputávamos o joguinho electrónico, que
o Tetris seria um jogo para toda a vida; mesmo tendo passado de moda há tantos
anos.
Rinchoa, 13 de Agosto de 2022
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