Foi o Vítor quem escolheu o destino da passagem de ano para entrarmos em
2022 de uma forma diferente: a coincidência recaiu sobre o Hotel Mar e Sol
em São Pedro de Moel, terra que conheço desde cedo pois a Marinha Grande – sede
do concelho – foi a minha casa até aos cinco anos. A ligação foi-se
desvanecendo pelos anos da adolescência e esteve a ponto de se perder, não
fosse o divórcio dos meus pais ter-me levado a regressar com maior regularidade
ao lugar que, ainda que levemente, seja o único onde me familiarizo com a
expressão “a minha terra”.
São Pedro é um paraíso em qualquer altura do ano, mas no Inverno traz algo
de fuga, de refúgio mágico plantado à beira da imensidão Atlântica, com o
farol, o miradouro onde nos despedimos do último pôr-do-sol, a casa de Afonso
Lopes Vieira…
Onde a terra se acaba e o mar começa
há uma terra onde amei, sonhei e sofri;
encheu-se-me de brancas a cabeça
e, debruçado para o mar, envelheci…
… e a calçada romana, as varandas típicas mescladas com a arquitectura
futurista das décadas de 40/50, a estrada atlântica (para um lado a Nazaré,
para o outro a Praia da Vieira), o pinhal (ardido mas sempre o pinhal dos
piqueniques da infância e da Ponte Nova) a toda a volta, e a Patrícia, o Vítor,
a Sofia e eu, para dois dias de festa e descanso naquele cenário envidraçado
que o Mar e Sol derramava sobre o mar.
No hotel havia um tolinho, nos cinquenta, talvez sessenta, a deambular pelo
bar-convívio onde no primeiro dia do ano eu assistia ao Arsenal – Manchester
City. Dizia umas coisas sem nexo, as recepcionistas condescendiam e eu
fingia que não via, não fosse uma troca de olhares acender uma conversa que me
queimasse a partida da liga inglesa.
Antes a festa havia sido divertida – por vezes, um réveillon normal passado
com amigos é tudo o que precisamos para fechar e abrir um ano com alegria e uma
história para recordar – e nesse primeiro dia de 2022 jantámos na Nazaré. As
peripécias do vai-não-vai por causa da esquizofrenia dos testes covid, obrigatórios,
podiam ter sentenciado de forma dramática o nosso programa (a Sofia e eu
respirámos de alívio na manhã do dia 31, quando na farmácia confirmámos os
resultados negativos que permitiriam não darmos o investimento por perdido).
Sempre que regresso àquele lugar recordo a primeira infância, tempo bem
vincado na minha vida pela fronteira dobrada aos cinco anos ter assinalado
claramente um antes e um depois. Alguns episódios chegam-me da memória
distante, outros da que fui construindo, aproveitando peças que os meus pais, a
minha tia e os poucos amigos que conheço desse tempo foram partilhando, e
outros ainda do que eles me contaram, mas que não vivi, ainda que já por lá
andasse nesse tempo.
* * *
Os tristes episódios dos assaltos, intimidações tentativas de homicídio e
homicídios perpetrados pela organização terrorista FP-25 de Abril decorreram,
maioritariamente, na primeira metade da década de 80, coincidindo, portanto,
com o período em que vivi na Marinha.
Nunca havia explorado muito a acção da organização até ontem, quando peguei
no livro de Nuno Gonçalo Poças Presos por um Fio – Portugal e as FP-25 de
Abril. No momento em que escrevo este texto (em que tive que o escrever,
tão forte foi o impulso), levo um terço lido, mas constatar terem havido
atentados a pessoas e locais da Marinha Grande, não só me surpreendeu como me
fez compreender o porquê de o meu pai, sempre que se referia àqueles anos (foi
gerente de duas ou três industrias da região, em tempos altamente fanatizados)
dizer que, à saída da fábrica, verificava se havia alguma bomba debaixo do
carro…
“As BR [Brigadas Revolucionárias] não deixaram de cometer
homicídios. Um destes casos foi o do ex-militante do PRP [Partido
Revolucionário do Proletariado], José Plácido, desenhador da construção
civil, baleado na Marinha Grande com quatro tiros de pistola na véspera de um
julgamento em que iria prestar declarações alegadamente comprometedoras para os
seus antigos camaradas.”
“A 30 de Janeiro de 1982, cinco membros das FP-25 assaltaram um veículo
da empresa H. Abrantes, em São Pedro de Moel, roubando 5.000 contos [190.000
euros a valores de hoje].”
“No mesmo dia [25 de Janeiro de 1984], a casa de um administrador da IVIMA, vidreira da Marinha Grande [onde trabalhou o meu avô e a minha tia], foi atacada com cerca de vinte tiros, daí tendo resultado apenas danos materiais.”
“Perto das cinco da tarde do dia 1 de Junho [de 1984], o então
dono da [Manuel] Pereira Roldão [vidreira da Marinha Grande],
Arnaldo Freitas de Oliveira, foi ferido com dois tiros à porta do prédio onde
vivia, em Benfica. Um homem encapuzado tinha saído de um carro estacionado em
frente ao prédio, onde ficaram outros operacionais, disparou cinco tiros contra
Freitas de Oliveira, voltou a entrar no carro, que arrancou a alta velocidade,
disparando tiros para o ar e lançando panfletos das FP-25 à rua, reivindicando
o atentado. O industrial arrastou o corpo pelo passeio, pedindo socorro e
deixando atrás de si um rasto de sangue na calçada. À porta do prédio,
assistindo ao esforço da vítima, estava o seu filho, doente mental.”
“Foi já em contexto de elevado controlo policial que as FP-25 de Abril assassinaram o empresário da Marinha Grande, Alexandre Souto, na FIL.” [Souto havia agredido violentamente um ladrão no seu terreno, que meses mais tarde viria a morrer. Era militante da FUP e de imediato a vingança ficou prometida: “não podia de forma alguma ficar impune”]
Os relatos anteriores, transcritos do livro, aconteceram no período em que
vivi na Marinha Grande. Quer os sindicatos, em luta contra o patronato, quer o
próprio Partido Comunista (nesta altura mais por calculismo e por nunca ter
apoiado quem fugisse ao controlo férreo ditado pelo comité central e/ou pelo
PCUS), condenavam estas acções, não se revendo na violência destes métodos,
pelo que os terroristas, contrariamente ao que se esforçavam por apregoar,
somente se representavam a si próprios e ao seu fanatismo, desprovido de
qualquer sentimento colectivo, pese a insistência na reivindicação da
perseguição política e em termos como assembleias populares, devolver
às massas e de todos os que não seguissem a sua cartilha serem corridos a Imperialismo,
Capitalismo e – claro – Fascismo. A apropriação da data (25 de
Abril) para o nome da organização que cometeu assassinatos é, por si só, um
atentado à democracia.
Com um terço do livro lido, vou-me surpreendendo com o que vou conhecendo
não só de uma época que desconhecia da História de Portugal, como de uma
realidade que seguiu paralela à minha infância na Marinha Grande. De igual modo
me surpreendo com o facto de os terroristas e dos seus actos terem sido
sublimados, indultados, amnistiados e – pasme-se – alguns deles (não só das
FP-25) condecorados! O comportamento dos políticos (quase nenhuma cor
partidária escapa) da época poluiria este texto (quem sabe um outro dedicado ao
livro), de tão ignóbil que foi, e por isso abster-me-ei de mais qualificativos.
Percebo agora não ter sido só conversa o cuidado do meu pai em verificar se
o carro estava “limpo”.
* * *
De volta à idílica passagem de ano de 2021 para 2022, nesse momento ainda eu não me questionava sobre as FP-25 de Abril. Queria apenas gozar aquele pedacinho de vida junto ao mar na companhia da Sofia e dos meus amigos, comer, beber um pouco e mostrar algumas paisagens da infância. O que não imaginava era que o tolinho que deambulava pelo átrio do Mar e Sol a balbuciar sons sem sentido era o filho de Arnaldo Freitas de Oliveira, que da porta da sua casa em Benfica viu o pai ser alvejado pelos terroristas das FP-25 de Abril. Disse-me o sr. Manuel, companheiro da minha mãe, contando também – e admito ser verdade – que Freitas de Oliveira deixou a herança a quem tomasse conta do filho. O dono do Mar e Sol aceitou o repto. É essa a razão pela qual o homem lá vive (mantendo-se como protegido do dono).
Rinchoa, 11 de Setembro de 2022
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