Um Dia no Sul

 


Foi um dia bonito, talvez o último (que na realidade foi o penúltimo embora assente melhor fixá-lo na derradeira hora do descanso) dia de férias, em que descrevemos o arco da A22 pela manhã amena de Setembro, em que o sol ainda chega com o calor suficiente para banhos no mar e sombra na esplanada, mas não daquele jeito demasiado tudo, em que a roupa cola e as noites se fazem insuportáveis, rumo ao Sotavento, lugar que arrasto da infância longínqua para o abraçar/abraçarmos neste presente que nos oferecemos, o barco deserto para a praia ainda mais deserta depois de visitarmos Cacela para um café (e bolo, sempre) num boteco pejado de moscas moles e as fotos habituais, que do promontório junto à capela e ao quartel, se mostram incapazes de captar o amor que ali nos une, a ria descarnada em baixo, até à língua de areia que nos estende o ´lençol de azul paraíso cintilante, e nós no barco e mais chapas lançadas para fora, para a Fábrica e para a mansão de Teresa Heinz Kerry, e para a praia que se aproximava, prolongamento da planura tranquila do primeiro Outono, que seguia na esteira do Verão, teimoso por não fechar a porta, e nós contentes pelo momento, saindo para o fundo lamacento no cuidado com a carteira e com as toalhas, o chapéu e o pouco mais que levávamos, para fixar a sombra e perdermos o paraíso de vista num Este-Oeste por onde iniciámos logo o desenho picotado das pegadas na maré vazia, o prazer de caminhar porque faz bem, da companhia um do outro, da espuma desfazendo-se em beijos pelos nossos pés e a luz regulada para um ocaso persistente, longe da fúria escaldante de Julho e Agosto, enquanto aproveitávamos aqueles últimos lampejos de um tempo que corria connosco, a nosso favor como o vento refrescante de uma corrente de ar em dia de seca, antes do mergulho com a água a meia altura para depois secarmos ao sol sem palavras nem porquês – tão desnecessários quando tudo já foi dito e o que nos une subentendemos – resvalando para a hora da sobremesa o abandono do local do crime, um crime frequentar aquele lugar no final de Setembro, e de novo o barco, agora com mais água, e o chinelo preso quase se desfazendo no lodo antes de o compor e 


lavar os pés na torneira, lembrando um Verão antigo – anos oitenta? – ali ao lado, em Cabanas, quando a maré encheu, e os chinelos se perderam, cortes nos pés e um desequilíbrio levou o bico do chapéu de sol a abrir-me o lábio de criança, dois casais, quatro filhos, no tempo em que se carregava tudo para a praia, ainda que uma ria e um lodaçal se interpusessem para escrever a aventura que seria moldada, martelada e retocada de cada vez que um dos quatro adultos a evocasse, mais tarde só os dois homens – nada de mortes, só divórcios – restariam para ir buscar o episódio, cada vez mais esquecido, mais distante daquele outro que aconteceu ali mesmo, enquanto arrancávamos para a 125 a caminho do polvo em Santa Luzia, paraíso do molusco em terra estreita, estacionamento tranquilo, tal como a espera (curta) para a primeira esplanada do agrado, e um copo de vinho branco, e uma salada de polvo e um queijinho do qual guardei a fotografia do rótulo para não mais voltar a comprar mas que ali marchou que nem ginjas, ao bater das três da tarde, talvez mais, pouco importava quando tudo sabia tão bem, a Sofia à minha frente e os barcos baloiçando na brisa que varria um dos lugares mais bonitos, descansar a vista naqueles braços de água insistindo que o paraíso é cá em baixo, e nós sem vontade de pagar depois do café, mas tinha que ser, pagando até o vinho que (recordo agora que veio na conta!) nunca chegou, mas pouca importância fazia a não ser para o empregado, que teve naquele extra a gorjeta que lá iriamos deixar, e seguimos para Tavira, o Vila Galé onde já crescido regressei com a família para recuperar o cenário do Verão em criança, e o mercado deserto ao meio da tarde onde me detive na banca das boinas, tentado em levar, mas não porque já tenho duas, anda lá que eu ofereço-te disse a Sofia e eu a fazer que não cheio de vontade de sim, por ser ela a oferecer e por ser a ela que associaria aquela oferta daí em diante, e experimentei e não era bem aquilo – julgo ser mais esquisito com boinas de Verão – e comecei a ver as de Inverno e estas sim, são coisa de valor, ainda que estejamos em época de calor, e voltei a experimentar, todas apertadas neste capacete cabeçudo encaixado no pescoço, para levar um número abaixo daquele que me parecia melhor pois Olhe que elas depois alargam! nas palavras da senhora que nunca pensou vender uma boina de Inverno naquele instante só nosso, com a pedra de toque a sair da Sofia – Fica-te bem! – e ficou feito, uma compra improvável que nos acompanhou pelo jardim ao longo do rio e na ponte romana sobre o Gilão, postal de um outro Algarve, mais virgem, mais Marrocos, mais Sul, ou menos agressivo, menos turistas, menos álcool, e nós serpenteando por ali de mão dada, as ruelas escrevendo as vidas, as nossas que por ali passavam a caminho do carro, o regresso pela 125, estrada mítica, poderosa naquele troço tão distante, canto perdido do país, o vezeiro engarrafamento em Olhão, ponto de pus cagado de rotundas no mapa do sul e a confusão habitual no contorno de Faro – com esta merda de indicações, ou vamos parar ao aeroporto ou à auto-estrada – para no fim tudo correr bem, talvez pela primeira vez, das poucas que por ali passei, e entrarmos num novo pára-arranca que não causava mossa, já próximos de casa, onde queríamos e não queríamos chegar, porque era bom regressar, como havia sido bom o dia que quase fechava as férias, as melhores, no melhor dia, na melhor companhia, e quando assim é, tudo do bom e do melhor, a vida sabe melhor.

Rinchoa, 28 de Outubro de 2022




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