O Meu Avô dos Livros

 


A circunstância ocasional de mal ter conhecido o meu avô materno, Manuel Alexandre, tem-me levado a recolher, sem grande curiosidade diga-se, os testemunhos daqueles que se lembram de quem ele era. Saí da Marinha Grande em Agosto de 86 e o meu avô viria a falecer no ano seguinte. Já antes, com ele acamado, pouco partilhávamos: estava doente e eu tinha quatro ou cinco anos. Cruzámo-nos mas não o conheci (quantas vezes abusamos da palavra “conhecer” quando na verdade queremos dizer “passei por” ou “cruzei-me com” na vida?) o que, pelas descrições que o meu pai, a minha mãe e a minha tia fazem dele, me dá pena. Por eu ser parecido com ele, porque estava tantas vezes “na dele”, e porque gostava de ler.

Hoje fui à Livros & Companhia, implantada no largo Ilídio de Carvalho, onde meus avós moraram (quase) toda a vida em comum. Havia deixado encomendados três livros, dois para oferta e A Insanidade das Massas, para me munir de visões complementares desta insanidade que mistura a Cultura de Cancelamento com Redes Sociais. Apresentei-me à Odete, a dona ou empregada (?), como sendo filho, sobrinho, neto de tal. Ela então contou-me como passou e/ou abriu quase todas as livrarias na Marinha, desde uma na rua do jornaleiro – se eu me lembrava? não pois saí da Marinha com cinco anos e são mais as lojas de que me lembro quando voltava de visita do que enquanto lá vivia; mas lembro-me de leitaria, por onde passava com a minha avó a caminho da praça, do jornaleiro e do Benjamim; e da papelaria do Quintela, no prédio onde vivíamos – à Diálogo, na rotunda Heróis do Ultramar (hoje Praça do Vidreiro), à do Atrium, que há anos também acabou por fechar, estabilizando naquela casinha de bonecas onde hoje compro a maioria dos livros.

O meu avô era um grande leitor e uma pessoa muito educada (formal? distante? talvez tenha sido tudo isso), lia muitos livros da colecção Vampiro e passava por ali (não aquela livraria, mas outras onde a Odete havia trabalhado) muitas vezes. Devorava livros e era muito delicado. Terá sido mais ou menos isto que ela me disse nos cinco minutos de conversa que desfiámos ao pagar, a chuva lá fora enriquecendo os quadros que ela ia pintando do meu passado para mim desconhecido. Eu conheci aquele avô que ela pintava no olhar de um miúdo de quatro ou cinco anos. As restantes peças foram sendo encaixadas pelos adultos e pelos seus olhares sobre o quadro que formou a vida daquele homem que talvez tenha sido mesmo parecido comigo (não pela delicadeza, mas por uma certa ausência no seu mundo e outra tanta sisudez). E gostei de o revisitar, de ter um bocadinho mais do Manuel Alexandre, nomes que transporto com carinho no meu próprio nome, na minha vida de que mal me lembro.

Talvez esta necessidade escorregadia de buscar referências se deva à ausência de três dos quatro avós na infância. O meu avô viveu o tempo suficiente para eu registar na memória a sua fisionomia, o seu silêncio, e os livros da sua seriedade. Compreendo hoje a beleza que nos traz a possibilidade de viajarmos sozinhos de vez em quando, sem necessidade de ruído – quanto o meu avô almejaria o silêncio nesta era do ruído se tivesse chegado à cacofonia dos dias de hoje! – ou de nos embrenharmos por leituras mais profundas ou mais lúdicas, sempre viajando por lugares desconhecidos na quietude do sofá. Não vou tão longe ao ponto de divagar ter sido ele quem me terá passado tal testemunho por uma qualquer ligação cósmica, mas talvez algum gene mais teimoso tenha resistido duas gerações para renascer nesta forma de estar, nem boa nem má, somente parecida.

Trouxe mais dois livrinhos da FFMS e deixei lá uma das ofertas (vinha com defeito), com a promessa de que, daqui a mês e meio, quando voltarmos à Marinha, eu o levar. Talvez pergunte mais qualquer coisa sobre o meu avô. É que o filtro da família é sempre menos poroso do que o de terceiros e o meu avô, tendo sido amado e odiado na terra (foi chefe de pessoal da IVIMA), tinha um lado pessoal que muitos desconheciam (como todos nós), mas que é para mim fascinante, por ser meu avô, sisudo, leitor, e já agora delicado.

A Odete agradeceu-me a referência com que me apresentei; já eu não lhe agradeci os cinco minutos de magia e amor que ela me concedeu sem o saber.

 

Marinha Grande, 29 de Outubro de 2022



Comentários

Sofia disse…
Seja lá qual for o bocadinho que herdaste... Eu gosto muito da combinação de todos ❤️
António V. Dias disse…
São os bocadinhos que nos fazem, os meus com os teus ❤