Na noite em que fui conhecer a Manuel Lourenço fazia frio, e depois de
duas ou três fotos da mudança de cor, silêncio e marulhar, ponderámos ficar na
esplanada quando o homem retirou o painel dos gelados a preços de ladrão (eram
nove; hora de fecho: dez) e eu aproveitei a embalagem – Já estava com frio,
mas se não querem fazer negócio vamos tomar café a outro lado – e a Sofia Queres
ir tomar café à «Riviera»? ao que arrefeci o Não, prestes a sair ao
chocar de frente com a alteração do plano inicial – um café em frente ao mar –
para, de novo embalado pelo frio, cuidar que talvez estivesse melhor no
aconchego da pastelaria de Albufeira, com os bolos que jogavam noutra divisão.
Noite de Verão na esplanada pelos primeiros dias de Maio e uma entrada
triunfante para a montra semi-despida no final de um dia de semana – só nós e
os beefs é que estávamos de férias – e depois de estudar o assunto com
uma rápida varredela do olhar experiente (acontece o mesmo com filmes e livros,
o juízo instantâneo do que vale ou não a pena, o trigo e o joio) paralisei numa
torre de castelo de chocolate cortado por sucessivas lâminas de chantilly,
humedecido por um creme vermelho que eu atribuíra ao morango. Com a decisão
cunhada, demorei alguns segundos na prospecção, só para certificar a certeza, e
pedi uma fatia daquela bomba potencial.
Sob a noite amena, aguardámos pelos bolos e cafés (a Sofia pedira uma
trança!) na esplanada, enfeitada pelas vozes desafinadas do karaoke no bar de
hotel cujas janelas com cortinas fechadas colavam com as nossas costas. Chega a
fatia, com todos os andares trepando prato acima, terminando numa flor de creme
e uma ginja no topo. Afinal não era morango e temi pela vida. Tratei logo de
despachar o fruto, corpo estranho, qual ananás na pizza ou fruta cristalizada
de bolo-rei, e – surpresa infinita! – soube-me pela vida! Soube também, naquele
instante, que a noite iria ser de glória!
À primeira garfada, a fofura voluptuosa do chocolate derretendo-se entre
o creme e o corrimento de ginja que embebia o todo à medida que eu o
desmanchava com a língua explodiu dentro da minha boca com uma profusão de
paladares como… como alguns saberão como o quê, mas neste ponto, poderia fazer
um desvio e chamar ao texto o Dalai Lama… como o Dalai Lama, homem santo,
iluminado, levitando numa nuvem de silêncio a meio caminho do Nirvana, que se
vê tentado a meio do percurso – Chega cá meu menino, chupa aqui a língua ao
pai – tal como terei pensado ao cair sobre a torre imberbe de chocolate e
ginja e chantilly e língua e boca e paladar e tudo e tudo a revolutear em mim
num estremecimento de luxuria, desculpando-me no final como o mestre da
meditação – é cultural – e siga para bingo.
Fui ao céu, para voltar à cadeira da Riviera e agradecer às
estrelas que trouxera de lá de cima e rodopiavam agora à minha volta – deve ser
assim que começam as overdoses – por aquele néctar, aquele naco, aquele momento
de inspiração em que optei por uma fatia daquele bolo em vez de qualquer outro,
e que mais tarde a Sofia veria na conta dar pelo nome de Floresta!
A Riviera é cara, mas não é dessas invenções gourmet onde damos o
cu por um bombom regado com um fio de caramelo salgado, enfeitado com flores e
uma cagadela de chantilly. Qualidade e QUANTIDADE é o que ali se respira, e
quando assim é, sabe bem ser bem servido, verem-se cumprir as expectativas onde
o tamanho também interessa, além de todo aquele degustar aveludado que se
desfaz na boca, prolongando o sabor por longos segundos de puro prazer.
O chocolate da Floresta estruturava o bolo, mas era macio, nada tendo
a ver com os clássicos de chocolate ressequido, pontuados por meias nozes,
varicela a secar sobre placas de psoríase, que passam dias nas montras das
pastelarias, agarrados por uma cobertura, também ela de chocolate, que a dada
altura já nem é creme mas uma crosta de melaço em que à primeira garfada só nos
apetece 1) vomitar 2) pedir o reembolso 3) embalar e levar pois necessitamos de
cobrir uma fenda na parede lá de casa e o cimento está caro.
No fim, o remate perfeito do café depois do doce, o disfarce ideal a
apagar os vestígios do crime, a confissão após o pecado original, três
Pais-Nossos e cinco Ave-Marias de cafeína que sabem pela vida depois de
envolver a língua em tal profusão de prazer.
Depois de ontem, as férias acabaram. Podemos fazer as malas já que
qualquer outra experiência que venhamos a tentar por estes dias, será sempre
comparada com a Floresta de chocolate. Quem não gosta de chocolate,
chantilly ou ginja bem pode duvidar de toda a vida passada, da terra ser
redonda ou da existência de Deus: esta bomba de Hiroshima rebenta com qualquer
crença, preconceito ou mania.
Há um antes e um depois de ontem à noite nesta semana algarvia. Para
quebrar tal certeza, resta-me (resta-nos, pois sei que a Sofia me acompanha
nesta escalada à doçaria portuguesa) regressar e assim diluir aquele dia
fatídico por outros, mais um pelo menos, e voltar onde fomos felizes para
repetir a dose, quiçá iniciar uma tradição, espancar a dieta cedendo à tentação
ou aumentando a distância da corrida matinal, mas por favor, nada de bom senso
e de o açúcar em excesso faz mal. O mesmo já se disse do sexo e séculos
depois, ainda está por provar onde é que está o mal.
Aquela Floresta é um caminho para a perdição, e eu quero
perder-me, como no amor ou no prazer. É de chorar e esporrar por mais. Para
além de qualquer dúvida razoável.
PS:
Não fosse o pacóvio do bar da Manuel Lourenço querer fechar mais cedo e a Floresta
não passaria a texto nem entraria no roteiro do meu paladar. Talvez passe por
lá para lhe agradecer, mas sem lá deixar um cêntimo da fortuna que o gajo pede
por um gelado. Agora que vi onde está a galinha dos ovos de ouro…
Guia, 4 de Maio de 2023
PS2:
Voltámos lá ontem, dia 5, agora com o meu pai e com a Teresa. Tinha que ser.
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