O timbre da voz
é o de uma menina de oito anos, mas a simpatia (ou talvez seja ingenuidade e eu
queira dotá-lo de um atributo mais nobre), ao fim de meia-dúzia de encontros,
faz-nos esquecer as limitações do T., ainda que eu não lhe ofereça grande
abertura para a conversa descolar do arranque inicial, pesem as suas tentativas
diárias de lançar um comentário, sobre a notícia que passa na televisão,
invariavelmente adormecida pelo Zé na CNN Portugal, na esperança de que eu
retribua. Faço-o, quase sempre com um “pois”, pois quero continuar a ler e as
notícias cada vez mais me agastam em vez de informar.
Todos os dias o
T. monta a esplanada do Zêzere, antes das sete, antes da chegada dos
taxistas e dos primeiros clientes, onde me incluo. Quando madrugo (mais ainda
do que o costume) e chego pela hora de abertura, já se vê luz no interior, o Zé
a tratar, numa inércia de locomotiva, das acções que preparam o dia num café de
Lisboa, e o T. a soltar a corrente que prende as mesas e cadeiras no exterior,
e começar a distribuir a esplanada pelo habitual desenho de jogo das damas de
casas rectangulares, que ao longo do dia se vai adaptando – ora mesas quadradas
ora mais compridas, de acordo com as dimensões dos grupos que chegam para o
almoço ou apenas para um copo depois do trabalho.
Àquela hora
ainda o parquímetro não acordou e por isso, é com alegre descontracção que
estaciono e, de livro debaixo do braço, me dirijo para aquela janela mágica do
dia antes de a minha própria locomotiva laboral iniciar a marcha, em que leio e
troco meia-dúzia de impressões com o Zé e com o T. No breu madrugador do
Inverno ou na torra anunciadora de um dia de Verão, o T. lá está,
invariavelmente, de kispo e luvas ou manga curta, para cumprir o serviço que
despacha em vinte minutos, talvez trinta, e pelo qual lhe pagam um galão e uma
sandes mista. O galão vejo-o e sei que a sandes é mista porque uma vez o Zé se
enganou e entregou-ma, em vez da de fiambre, como habitualmente. Eu não disse
nada pois até prefiro esta; somente evito o queijo para subtrair uma fatia
diária de calorias – aquela dieta envergonhada que contamos a nós próprios para
nos convencermos de que estamos no caminho da gente saudável.
Não bebo galões,
mas admitindo que o conjunto fique por uns € 3,80 o que, multiplicado pelos
vinte e dois dias úteis do mês, perfaz € 83,60. Um ordenado teórico de €
1.337,60, caso o T. trabalhasse oito horas por dia, não é mau.
O T. tem
algumas limitações, que vão muito para além do timbre da sua voz, já o disse,
mas ao nível a que conversamos (ou trocamos vocábulos), não o noto, ainda que o
sinta. Explico melhor: noto qualquer coisa da frágil na atitude, no olhar e até
na linguagem corporal, mas ele não se baba, não tem dificuldade alguma nos
movimentos nem poisa o olhar num vazio distante; antes me olha com uma certa
ânsia de aprovação e se mexe (e actua) com movimentos demasiado mecânicos, como
se só tivesse aprendido aquela meia-dúzia de ferramentas para a vida e as
soubesse manejar com grande à-vontade, sem nada mais arriscar para além desse
aprendizado inicial.
É agradável
trocar impressões com ele, mas aquele pedacinho é o que consigo abrir para ler
um pouco no dia fora de casa (por vezes forço um almoço solitário para pensar
na vida e avançar mais umas páginas, mas a maioria das vezes prefiro o
convívio), por isso esquivo-me quase sempre a alimentar conversas longas, com
ele ou com o Zé, ainda que haja dias em que a excepção aparece.
Normalmente são
as notícias, que desfilam na passadeira infinita com um ciclo de vinte minutos
(mais ou menos), depois do qual voltamos a ouvir os mesmos relatos da guerra,
do aumento das taxas de juro ou da polémica do momento com o governo, quem dá o
mote para uma pergunta do T., para o Zé ou para mim, mas quase sempre para mim.
Respondo-lhe e por vezes falamos dois ou três minutos. É quando me apercebo de
que as barreiras do T. se estendem pela vastidão que não aprendeu, numa vida
demasiado oleada nos movimentos automáticos de montar a esplanada do Zêzere
pela madrugada ou ajudar na cozinha de uma instituição ou de um restaurante
(apanhei uma vez uma conversa entre ele e o Zé).
Talvez haja
muitos Ts. por esse país fora, pessoas que não devem ter a sorte do T., que
alcançou um grau de autonomia bem razoável.
Veio então o dia em que me perguntou onde ficava o Haiti (a televisão noticiava uma crise humanitária no país). Eu não sabia e satisfiz a curiosidade (a minha mais do que a dele) e, depois de pesquisar, disse-lhe que ficava nas Caraíbas, mostrando-lhe o mapa. Foi então que ele retribuiu “Não sei muitas coisas; só fui até Viseu quando era pequeno, a terra da minha mãe.”
[Começou a formar-se um projecto de conto, a história de alguém que nunca tinha ido além de um raio de dez ou vinte quilómetros do lugar onde nascera. Por agora, resolvi-me por escrever este texto. Ainda que a ideia do conto não tenha morrido, estas palavras esvaziam-na de alguma maneira. Teria que fugir demasiado à realidade para dar às personagens uma cor diferente do que aqui relatei. Provavelmente o conto não irá acontecer, mas a beleza da escrita reside também aí, na riqueza que é podermos escolher o tratamento a dar a um tema, crónica ou ficção.]
Pela primeira
vez o T., rapaz para a minha idade, talvez um pouco menos ou um pouco mais (é
difícil estimar o efeito do tempo em quem se demora numa vida tão diferente,
onde uns parecem demasiado velhos e outros novos face à idade) despertou a
minha curiosidade. Tinha que a satisfazer. Esqueci o livro e virei-me para ele:
- Então nunca
foste ao estrangeiro?
- Não, só fui
até Viseu.
- Nem Espanha?
- Não.
- Algarve?
- Não. –
resolvi reduzir o raio de acção
- Margem sul?
- Ah isso sim,
já fui à Costa da Caparica.
- E mais algum
sítio?
- Já fui a
Mafra, a Sintra, mas não fui a muitos sítios.
Tentei
disfarçar a surpresa, mas o T. é mais perspicaz do que a imagem que os meus julgamentos
de tasca o pintam. Ele percebeu, mas, por insuficiência ou aceitação, seguiu em
frente. E se eu acho que foi por ambos, o olhar dele, directo e curioso
apontado na minha direcção, levou-me a crer que ele sabe aceitar a sua condição
como eu não sei aceitar os pequenos contratempos do quotidiano. Talvez o T. se
tenha habituado à diferença e aprendido a relevar o que é importante. Julgo ser
mais isto do que uma insuficiente percepção da sua parte.
Noutras
condições, com outro interlocutor, teria perguntado “Mas nunca tiveste
curiosidade de ir mais longe, conhecer outros lugares?”, mas pareceu-me que
ficávamos melhor em regressar ao Haiti e falar das Caraíbas que passavam na
televisão, e em eu lhe confessar que nunca tinha estado em Viseu. Há coisas em
que não somos assim tão diferentes.
Rinchoa, 18 de Junho de 2023
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