Torel, 30 de Dezembro de 2025

 


No regresso do almoço, na Tasca do Peregrino, Largo do Mastro, venho pelo Torel. Está frio e sol, cinco graus pela manhã quando pouco depois das sete apanhámos o comboio. Desejo Bom Ano ao Carlos e saio da tasca bem almoçado, com o tempo das sextas-feiras sem reuniões, o escritório quase vazio no ocaso do ano e um pedaço de vida só para mim bem no centro da capital.

 O livro, bem interessante por sinal, acompanha-me, mas não é o momento da leitura. Avanço ainda três ou quatro páginas, mas é o quadro da cidade, em baixo, em frente, esquerda, direita, sob a névoa de um briol que me entra pela gola alta, impotente para me proteger, sob a luz mortiça deste Inverno, que aquece como a vela na casa gelada, que chama por mim. 

Vejo as gruas na cidade, eterna reinvenção do país sempre a preparar-se para algo, para tudo menos para o nosso quotidiano. Os preços e os turistas, e os ensaios da festa de ano novo a cintilar um pouco por toda a cidade.

Não há silêncio, mas é como se houvesse. O único banco desocupado deixou de o estar quando me sentei, a pele da perna por baixo do glúteo direito a gelar de encontro ao banco, com o rasgão remendado a ceder uma segunda vez (mais logo vou aos saldos). Pouco importa quando somos apanhados por um momento assim.

Pouso o livro no banco e olho a cidade de cima, difusa, desfocada. Tento o impossível, nada pensar. E invariavelmente recordo o ano que agora termina (e que ano!).

Casei, mudei de emprego e voltei a praticar o inglês, fui à Argentina (finalmente!), a minha mãe entrou no lar e termina o ano mais distante de todos nós, e eu apesar da distância, aproximei-me de todos, família e amigos, como se a parcimónia com que nos fomos encontrando tornasse cada momento mais valioso, cada encontro mais único para ser recordado, imune à rotina.

Não passaram mais de quinze minutos neste estado. Levantei-me para apreciar a vista junto à vedação e logo o banco foi ocupado por uma rapariga que me escapara, mas certamente estaria ali à espera de uma aberta, como os lugares de estacionamento na Rinchoa (não sete, mas setenta e sete cães a um osso). Ia descer de qualquer forma.

Pelo caminho que o Emídio me ensinou, venho pelo miradouro assente no telhado da escola primária, encaixada na encosta da colina junto à rua do Telhal. Vejo os putos a jogar à bola, subir ao baloiço, e volto-me novamente para Lisboa.

O trabalho que me espera está controlado. Desemboco no Telhal, numa saída que nunca vejo quando subo a rua, como se aquele portão mágico só me existisse para entrar na rua, vindo do Torel, e nunca no sentido inverso.

O momento não era para a leitura, mas para balanço. Ou talvez nem para isso fosse. Era só para estar ali e sentir, por um bocadinho, o que é existir e agradecer o privilégio.

Lisboa num dia frio de Inverno sem chuva nem vento é isto. Presta-se a isto. Presta-nos para isto. O almoço na Tasca do Carlos foi bom, acompanhado pelo livro e, nas mesas espalhadas pela sala acolhedora, pela descontração dos últimos convívios do ano. O epílogo do repasto serviu de balanço sem grandes cogitações. Se fosse possível sentir apenas, sem pensar, então aquele longo momento de vinte minutos, iniciado à saída da Tasca e findo quando entrei na Rua do Telhal, alcançou esse equilíbrio impossível. 

Sem histerias esfuziantes nem sentimentalismo barato, mas com nostalgia (dela não me liberto), voltei ao escritório. Como se caminhasse por outra Lisboa. Na beleza do Inverno, como um filme antigo com a cor desbotada pela luz. 


Lisboa, 30 de Dezembro de 2025

Comentários