No regresso do almoço, na Tasca do Peregrino, Largo do
Mastro, venho pelo Torel. Está frio e sol, cinco graus pela manhã quando pouco
depois das sete apanhámos o comboio. Desejo Bom Ano ao Carlos e saio da tasca
bem almoçado, com o tempo das sextas-feiras sem reuniões, o escritório quase
vazio no ocaso do ano e um pedaço de vida só para mim bem no centro da capital.
O livro, bem interessante por sinal, acompanha-me,
mas não é o momento da leitura. Avanço ainda três ou quatro páginas, mas é o
quadro da cidade, em baixo, em frente, esquerda, direita, sob a névoa de um
briol que me entra pela gola alta, impotente para me proteger, sob a luz
mortiça deste Inverno, que aquece como a vela na casa gelada, que chama por
mim.
Vejo as gruas na cidade, eterna reinvenção do país sempre
a preparar-se para algo, para tudo menos para o nosso quotidiano. Os preços e
os turistas, e os ensaios da festa de ano novo a cintilar um pouco por toda a
cidade.
Não há silêncio, mas é como se houvesse. O único banco
desocupado deixou de o estar quando me sentei, a pele da perna por
baixo do glúteo direito a gelar de encontro ao banco, com o rasgão
remendado a ceder uma segunda vez (mais logo vou aos saldos). Pouco importa
quando somos apanhados por um momento assim.
Pouso o livro no banco e olho a cidade de cima, difusa,
desfocada. Tento o impossível, nada pensar. E invariavelmente recordo o ano que
agora termina (e que ano!).
Casei, mudei de emprego e voltei a praticar o inglês, fui
à Argentina (finalmente!), a minha mãe entrou no lar e termina o ano mais
distante de todos nós, e eu apesar da distância, aproximei-me de todos, família
e amigos, como se a parcimónia com que nos fomos encontrando tornasse cada
momento mais valioso, cada encontro mais único para ser recordado, imune à
rotina.
Não passaram mais de quinze minutos neste estado.
Levantei-me para apreciar a vista junto à vedação e logo o banco foi ocupado
por uma rapariga que me escapara, mas certamente estaria ali à espera de uma
aberta, como os lugares de estacionamento na Rinchoa (não sete, mas
setenta e sete cães a um osso). Ia descer de qualquer forma.
Pelo caminho que o Emídio me ensinou, venho pelo
miradouro assente no telhado da escola primária, encaixada na encosta da
colina junto à rua do Telhal. Vejo os putos a jogar à bola, subir ao baloiço, e
volto-me novamente para Lisboa.
O trabalho que me espera está controlado. Desemboco no
Telhal, numa saída que nunca vejo quando subo a rua, como se aquele portão
mágico só me existisse para entrar na rua, vindo do Torel, e nunca no sentido inverso.
O momento não era para a leitura, mas para balanço. Ou
talvez nem para isso fosse. Era só para estar ali e sentir, por um bocadinho, o
que é existir e agradecer o privilégio.
Lisboa num dia frio de Inverno sem chuva nem vento é
isto. Presta-se a isto. Presta-nos para isto. O almoço na Tasca do Carlos foi
bom, acompanhado pelo livro e, nas mesas espalhadas pela sala acolhedora, pela
descontração dos últimos convívios do ano. O epílogo do repasto serviu de
balanço sem grandes cogitações. Se fosse possível sentir apenas, sem pensar,
então aquele longo momento de vinte minutos, iniciado à saída da Tasca e findo
quando entrei na Rua do Telhal, alcançou esse equilíbrio impossível.
Sem histerias esfuziantes nem sentimentalismo
barato, mas com nostalgia (dela não me liberto), voltei ao escritório. Como se
caminhasse por outra Lisboa. Na beleza do Inverno, como um filme antigo com a
cor desbotada pela luz.
Lisboa, 30 de
Dezembro de 2025

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