Antes da descoberta
da escrita e do amor emergirem para se mostrar sem receio nem orgulho; antes de
os valores se posicionarem nas faixas de rodagem adequadas ao andamento que a
minha estrada lhes permitia; antes do marasmo financeiro-empresarial ter derivado
em mais uma fuga à verdadeira natureza que me habitava; antes da real
importância da amizade ser confundida com a ilusão de ser tudo aquilo que
merecemos; antes de a matemática me ter trazido o calvário do ensino, o prazer
da demonstração, a vertigem da criatividade e o inferno do caos inicial; antes do
orgulho de uma boa média não ter bastado para compensar os anos de pressão
desperdiçados; antes de o isolamento cultural me ter dado a leitura dos grandes,
a música de outro tempo e as salas de cinema vazias, que muitos anos depois
viriam, quando já eu deixara de acreditar em algo mais para lá do prazer dessas
coisas de per si, a dar os frutos que
hoje agradeço; antes de os desportos se esvaziarem do prazer das discussões e
mau perder, e da corrida se ter convertido n’O desporto; antes de a razão ter
contruído os alicerces do edifício para me mostrar a
tempo que é a emoção quem lhe confere os acabamentos do conforto; antes de as
derivas, por mais incompreensíveis que se prefigurassem, atrasassem com doçura a
descoberta de umas coisas para abrir espaço à entrada de outras; andes de o
rigor e o respeito terem sido estraçalhados na confusão do medo e da aversão ao
erro, retardando alguns passos de mudança; antes dos sonhos de herói que
deveriam ter caído na infância resistirem à adolescência na hora de adormecer;
antes de conseguir explicar aquilo de que gostava à minha geração,
socorrendo-me da companhia, sabedoria e outras dádivas dos mais velhos para
prosseguir acompanhado na busca das coisas boas da vida; antes de Londres ter
cruzado as minhas coordenadas de melhor cidade do mundo; antes de os namoros
terem beijos de língua; antes de tudo isso ter acontecido, aconteceu o primeiro
deslizamento do Sol sobre a Lua que posso testemunhar com propriedade, a meio
de uma noite em que eu dormia como uma pedra e o meu pai me veio acordar, tal
como havia prometido e apesar de, se ele não o tivesse feito, eu acordasse
amuado no dia seguinte, a verdade é que pouco vi da intromissão da Terra, enquadrada
pela janela do quarto de onde eu espreitava o fenómeno, entre os dois astros de
dimensão aceitável à minha vista de criança, tal não era o sono que me tomava
por completo, ainda que à minha frente, lá longe, bem acima, um acontecimento
passível de ser observado de tantos em tantos anos (não é sempre assim com os
fenómenos astronómicos?) estava ali a actuar para nós, privilegiados que éramos
por poder testemunhar o fenómeno; antes o meu pai havia-me explicado a sombra
que se daria sobre a superfície lunar, a Terra interposta entre o Sol e o
satélite natural, a meia-lua escurecendo essa outra Lua num suave anoitecer
parcial que pouco espectáculo trouxe ao intervalo do meu sono mas cuja
lembrança mais viva que me sobrou não se passou lá longe, a muitos milhares de
quilómetros de distância, mas da janela do meu quarto, com o meu pai junto a
mim de binóculos na mão, objecto de colecção que pertencera a um antepassado e
fora retirado à pressa do armário de velharias, ampliando pouco mais do que a
lupa com que eu concentrava os raios solares para queimar pedaços de papel por
brincadeira, mas que naquela noite foram suficientes, nas mãos do meu pai, que
me acordou a meio do sono, para construir a memória que veio antes de tanta
vida, conflitos e paixões que eu mal podia imaginar naquele intervalo sonolento
que ajudou a moldar a curiosidade pelos grandes mistérios do Universo e a
gratidão pelos pequenos gestos de família no quarto onde eu dormia.
Lisboa
e Caparide, 29 de Agosto de 2019
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